Uma conversa sobre o papel das polícias com a professora Priscila Vilella (PUC-SP).
Por Vinícius Munhoz e Thais Akemi (leia a material original da Agência Jovem)
“Nosso horizonte é (um horizonte) muito estruturante. Tem que ser (quase) revolucionário mesmo. Subverter essa ordem (que é) toda estruturada nessas bases de exercício de poder de raça, classe e gênero”.
“Não acabou, tem que acabar! Eu quero o fim da polícia militar” é um dos mais ecoantes gritos nas manifestações de caráter progressista que acontecem no Brasil, e principalmente no estado de São Paulo. Essa canção sintetiza uma das principais demandas da esquerda dentro da temática da segurança pública: a desmilitarização da polícia militar.
Apesar de ajudar a popularizar as discussões em torno da violência policial, esse pedido pode limitar a complexidade do debate. Afinal, a desmilitarização é a única demanda possível? Ela resolve o problema da [in]segurança pública? Quais devem ser nossos horizontes quando discutimos segurança pública?
A função policial
Para responder tais perguntas, primeiramente é importante compreender a função estrutural policial. No momento da criação da “polícia”, com a chegada da família real no Brasil, em 1808 – até então a “Guarda Real” – sua função se limitava à proteção da propriedade privada dos brancos e ricos, reprimindo a população escrava preta. A função da polícia era, então, a manutenção de uma ordem social estabelecida. O que isso significa? A polícia tinha como objetivo, por meio da repressão da população negra, proteger toda a estrutura social e econômica escravista, desigual e racista.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, como entenderíamos a função da polícia atualmente? Vivemos em uma sociedade capitalista, produtora de desigualdades e concentradora de riquezas. A partir do momento que o modelo econômico, social e político vigente produz desigualdades, é necessário que haja um braço do Estado para reprimir aqueles dados como improdutivos e subversivos à ordem social, classificada como “classe perigosa”.
Não é à toa que, no final do século XX, com a intensificação das políticas neoliberais e o gradual desaparecimento do Estado de bem-estar social –processo compreendido em escala global – se viu o forte aumento do investimento em segurança. As políticas públicas neoliberais fabricam desigualdades, mazelas e insatisfação que devem ser contidas por aquele que representa o monopólio do uso da força: as polícias.
Quem seria essa “classe perigosa”? Vamos aos dados: 75% das mortes provenientes da violência policial são de negros. A chance de um jovem negro ser assassinado no Brasil é de 2,5x mais do que um branco. Segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional mais de 65% dos presos no Brasil são negros. 75% dos presidiários brasileiros têm até o ensino fundamental completo (2014). Ou seja, o recorte de raça e classe são fatos. Quem está preso, quem é símbolo da classe perigosa são pretos e pobres que, por não se adaptarem a ordem social vigente, são, através de vias institucionalizadas a normatizadas, colocados à margem dela: enviados para a cárcere.
A ideia de “classe perigosa”* também se evidencia nas diferentes atuações policiais mediante ao bairro em que se encontra. A polícia age da mesma forma no Jardins e na Paraisópolis? A polícia age da mesma forma com o periférico e com o empresário de Alphaville? Enquanto nos últimos 10 anos as mortes de brancos caíram 12,9%, as de pretos aumentaram 11,5%. segundo o Atlas da Violência de 2020. A quem serve a polícia? Paz para quem?
Fim da Polícia Militar?
Pedir o fim da polícia militar significa exigir que a força do Estado deixe de acessar instrumentos de guerra para o policiamento urbano. Significa, principalmente, desvincular a polícia militar do exército, transformando-a em uma instituição civil, com treinamentos e instruções que sejam adequados na atuação do policiamento urbano de defesa dos direitos. Tal mudança é uma via de mão dupla, pois, não só adequaria as instruções policiais para a função civil, voltada para a proteção da cidadania e defesa de direitos, como também melhoraria as condições do policial, possibilitando greves, sindicalização, filiação partidária, etc, impossibilitando, por exemplo, os motins policiais que temos em redor do Brasil, como no Ceará e no Espírito Santo nos últimos anos.
Por mais que essa demanda seja válida e fundamental para a diminuição da intensidade da violência policial, a discussão vai mais além. A polícia militar – aquela fardada na rua, com atuação ostensiva e necessidade de flagrante – apesar de ter se consolidado como símbolo da violência policial, é apenas uma das dimensões violentas dentro do debate de segurança pública.
Dentro do tema especificamente das polícias, é importante entender a diferença entre polícia civil e militar, ressaltando que elas estão separadas apenas pelas funções burocráticas que desempenham.
Por meio de ações investigativas, a polícia civil cumpre a mesma função de manutenção da ordem social, mas por trás das cortinas, pelos bastidores. A violência desta polícia pode não ocorrer por meio de armas e cassetetes, mas é uma violência que manda o preto, pobre e periférico para a cadeia sem provas e que realiza interrogatórios extremamente violentos. O DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), por exemplo, foi proveniente da polícia civil e foi o símbolo da violência durante a ditadura, nos explicou a professora Priscila.
Mas então quais são os problemas que essa divisão gera? A PM precisa mostrar serviço de alguma forma e, como sua atuação se limita às ruas, a única forma é prendendo em flagrante, sobretudo por posse de drogas ilícitas. Por tal razão que 1 a cada 3 presos no Brasil está sendo julgados por tráfico de drogas. Isso tendo em mente que o Brasil representa a 3ª maior população carcerária do mundo, na qual 40% dos presos são provisórios, ou seja, estão presos sem condenação esperando seus julgamentos.
É nessa conexão entre polícia e prisões que é possível compreender as outras faces da violência dentro da segurança pública e, indo mais além, pensar nesta problemática como um problema estrutural inerente ao próprio capitalismo.
Se temos um índice de prisão maior de negros é porque do flagrante até a prisão, a gente passou por todos o processo de justiça, que inclui a polícia civil, o delegado, o juiz, o promotor e todas as etapas de justiça que são violentos, mas de outra forma. Não é a farda ou a arma na mão.
Priscila Vilella
A partir desta análise, é difícil não lembrar do recente caso de racismo cometido por uma juíza que condenou um homem negro a 14 anos de prisão no Paraná. A justificativa utilizada na sentença continha a seguinte declaração: “Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça […]”. Após um pedido de desculpas e defender que sua afirmação foi tirada de contexto, a juíza ainda não recebeu qualquer tipo de punição por sua conduta.
Nesse sentido, é impossível pensarmos em uma mudança radical na violência por parte do Estado, seja direta ou indireta, contra as classes subalternizadas somente pensando na desmilitarização da polícia militar.
As diferentes dimensões vão desde a polícia, até juízes, corregedorias, promotores, da própria política de drogas, etc. Enquanto o sistema socioeconômico vigente produzir intensas desigualdades e por conseguinte houver a necessidade de repressão contra as classes excluídas, haverá essas bases de “exercícios de poder de classe, raça e gênero”. Esse episódio é apenas um dos diversos casos de violência proveniente de outras instâncias, que não a policial.
Em síntese, e reiterando a análise da professora Priscila, a solução do problema beira um horizonte estruturante e revolucionário. Desmilitarizar a polícia é uma saída importante e, apesar de parecer distante no contexto atual, tangível, mas não a única e está longe de ser a solução de todos os problemas. Não dizemos isso para pararmos de pensar em medidas a curto prazo que ajudem a conter os sintomas e diminuir a violência policial. Isso é sim extremamente importante! Afinal, pessoas estão morrendo neste exato momento! É importante abrirmos esse diálogo também na via institucional. O ex policial militar e atual candidato a vice-prefeito do Rio de Janeiro Íbis Pereira oferece boas reflexões para isso na entrevista concedida a Deutsche Welle.
O Instituto Sou da Paz, por exemplo, converge seus esforços em desenvolver medidas que ajudem na construção da melhores práticas policiais, contendo e diminuindo os números da violência policial. Por outro lado, nunca devemos esquecer que a polícia e todas as outras instâncias da segurança pública estão cumprindo exatamente suas funções: prender e matar aqueles que são subversivos e improdutivos ao sistema. Nunca devemos perder o horizonte revolucionário de uma mudança estrutural na sociedade.
Então, acho sob esse ponto de vista – o de pensar na polícia enquanto uma instituição que promove a repressão racial e de classe – o debate da desmilitarização não é o único suficiente. Temos que pensar no próprio sentido de ordem social que o estado busca, que tipo de sociedade queremos construir. Se estivermos em um projeto de sociedade baseado na divisão de raça e classe, a polícia pode ser organizada da forma que for (pode ser desmilitarizada) e ainda a instituição continuará reproduzindo essa lógica; o juiz que não tem nenhum instrumento militarizado em suas mãos, continuará prendendo mais negros do que brancos, mais pobres do que ricos
Priscila Vilella
A conversa com a professora Priscila Vilella está disponível na íntegra, no formato podcast. Ouça aqui: