As recomendações do Instituto Sou da Paz para que as respostas à onda de atentados e mortes nas escolas não se restrinjam ao emergencial
Reportagem publicada pela Veja (clique para acessar o texto original), sobre o estudo “Raio – X de 20 anos de ataques a escolas no Brasil (2002 – 2023)” do Instituto Sou da Paz
Num país de tragédias cíclicas, emergências em profusão, e crises que acabam sendo substituídas por outras na disputada atenção do debate público, é uma boa notícia que a prevenção à violência nas escolas brasileiras esteja no radar do governo e da sociedade civil.
Ontem (30/5) e hoje (31/5), um seminário internacional em Brasília reúne ministros e especialistas brasileiros e internacionais para discutir medidas para enfrentar o problema, além de debater políticas integradas de proteção do ambiente escolar. Na semana passada, o Instituto Sou da Paz divulgou um levantamento que, baseado em boletins de ocorrência e processos judiciais, ilumina com dados
qualificados a natureza dos ataques ocorridos nos últimos anos: as armas de fogo estiveram presentes em 11 dos 24 atentados registrados no país desde 2002. Essas armas causaram 34 mortes. Deixaram 57
feridos.
Se em Brasília os ministros Camilo Santana (Educação), Nísia Trindade (Saúde) e Ana Moser (Esportes) defenderam ações conjuntas paras combater a violência nas escolas – unindo esporte, educação, cultura, saúde e formação, e o que Santana chamou de “um olhar cuidadoso para crianças, jovens, professores e gestores” –, o relatório do Sou da Paz sobre o tema merece ser lido com atenção também para além dos números que radiografou (e, embora previsível, é sombria a constatação de que ataques a tiros geraram três vezes mais vítimas fatais do que as ocorrências com armas cortantes ou perfurantes). O documento pode ser lido neste link.
Passaram-se dois meses da brutalidade do ataque que deixou quatro crianças mortas numa creche em Blumenau (SC), que consumou uma série de cinco atentados fatais registrados entre setembro de 2022 e abril deste ano. Ali se anunciou o grupo de trabalho interministerial, com a meta de apresentação, em 90 dias, de propostas concretas para uma política nacional para o enfrentamento da violência. Como é praxe no Brasil, diante da comoção nacional, muitos parlamentares no Congresso e governadores país afora se apressaram a anunciar medidas de resposta, todas com foco na segurança pública. Câmeras de segurança e detectores de metais nas escolas, ampliação da ronda escolar e até convocação de policiais aposentados para criar policiamento ostensivo fizeram parte do pacote de anúncios de respostas imediatas. “Quando a resposta é trada na dimensão policial, o risco é dar a sensação de que tudo está resolvido”, alerta à coluna a diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo. “As pessoas compram as soluções que parecem mais fáceis e rápidas e se acalmam, e assim medidas populistas provocam o esquecimento de caminhos estruturais e de longo prazo.”
Um exemplo do quanto Carolina Ricardo está certa é o investimento nas rondas escolares. Não basta anunciar milhões, ela lembra, sem dizer como será a qualificação desses profissionais e seus objetivos, sem uma estratégia de criação de vínculos com a comunidade escolar. O risco é virar mais do mesmo: compra de viatura e de equipamentos, recheio fácil e perigoso de transformação das escolas em ambiente hostil de insegurança com natureza dupla.
Para além dos números, bem destacados pela imprensa ao ser divulgado, o documento do Sou da Paz traz recomendações para a prevenção de novos casos. Elas se concentram especialmente nos órgãos de segurança e educação. Sintetizo algumas: Corresponsabilização das plataformas digitais. Criação de equipes policiais treinadas em monitoramento de redes sociais com capacidade de realização de análise de risco, para triagem e atuação preventiva. Fortalecimento da ronda escolar, mas com criação de vínculos entre a direção da escola e batalhões locais. Treinamento e estabelecimento de protocolo de ação para que policiais militares possam responder a estes eventos de modo a eliminar a ameaça mais rapidamente possível, preparar socorro e evacuação das vítimas.
E mais: Estabelecimento de programas específicos para a saúde mental dos estudantes e de mediação e justiça restaurativa nas escolas para lidar com conflitos e bullying, que devem ser conduzidos por profissionais dedicados a esta atividade, sem sobrecarregar professores com mais estas atribuições. Treinamento de professores e funcionários para que consigam identificar comportamentos que precisam despertar ações da comunidade escolar. Endurecimento do controle e fiscalização da compra de armas de fogo e munições para restringir o acesso a instrumentos mais letais por parte dos agressores. Rever facilitações dadas para permissão de adolescentes (a partir de 14 anos) a clubes de tiro, ainda que acompanhados de um responsável.
Todas essas recomendações são acompanhadas de uma literatura que as sustenta, com base em experiências mal e bem sucedidas. “É um conjunto amplo de iniciativas, que demandam questões mais estruturais, e que passam antes de tudo pela garantia de investimentos nas escolas e nos professores, sem sobrecarregá-los ainda mais”, reforça Carolina Ricardo.
Num país em que muitas escolas públicas e a comunidade escolar precisam lidar com carências básicas, as medidas podem soar um paraíso distante da Terra. Por exemplo, não dá para deixar tudo na conta dos professores: se deles se esperará a capacidade de identificar uma crise, é preciso que tenham a quem recorrer, profissionais especializados no campo da saúde e da assistência social. Ou como o uso das redes sociais pode ser parte da discussão programática curricular, envolvendo professores, escolas e famílias a ajudar as crianças a ver o mundo (e as redes sociais) de modo saudável.
No campo das armas, chama a atenção o dado do Sou da Paz, segundo o qual em 60% dos casos a arma foi obtida na própria residência do agressor. Ou seja, há a necessidade de regulação mais forte na comprovação da guarda pelo proprietário de armas de fogo, com requisitos e fiscalizações específicos para deixar armas facilmente à mão de quem não deve. Neste caso, governo, legislação e família juntas numa pauta que é potencialmente facilitadora ou inibidora de ataques. São exemplos típicos de ações de núcleos multidisciplinares como forma de solução eficaz.
Eis a natureza dupla de que se espera no plano que será apresentado pelo grupo interministerial do governo: sem protagonismo de uma só área e sem esquecer que as respostas de curto prazo se combinam com a necessidade de atender demandas mais estruturais e de longo prazo. Sem isso, só nos restarão novas respostas de tiro curto quando a próxima comoção nacional surgir.