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    Valor Econômico | Efeitos de rearmamento durarão décadas

    26 de dezembro de 2022 às 12:14

    Homicídios caíram na atual gestão, mas o movimento começou em 2017, durante o governo Temer

    Reportagem publicada pelo Valor econômico(clique para acessar o texto original)

    Mesmo com a provável revogação de decretos que flexibilizaram a aquisição e o porte de armas pelo próximo governo, o país continuará por décadas a sofrer os efeitos da política armamentista do presidente Jair Bolsonaro. O diagnóstico é de especialistas que destacam como principal marca da atual administração a escassez de políticas públicas concretas na área de segurança pública.

    Entre o fim de 2018 e julho deste ano o número de armas em poder de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs) e de outras pessoas físicas saltou de 696.909 para quase 1,9 milhão – um aumento de 172,3%. Foram mais de 30 decretos, portarias, instruções normativas e outros instrumentos editados com o objetivo de facilitar o acesso da população a armamentos e munições, ressalta Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    “Essas armas vão permanecer em uso por muitas décadas. Como revogar a licença das armas já adquiridas?”, questiona ela. Paralelamente à multiplicação das armas nas mãos de civis, houve decréscimo no número de mortes violentas intencionais ao longo dos três últimos anos, conforme indica a edição de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

    Em 2018, último ano do governo Temer, houve 57.592 mortes violentas intencionais, enquanto no ano passado este total foi de 47.503. A redução foi de 17,5%. No entanto, a análise de um horizonte de tempo mais amplo, evidencia que trajetória descendente teve início ainda em 2017.

    “Esse é um ponto pacífico nos artigos científicos e relatórios de organismos multilaterais: armar a população nunca vai ser uma medida eficiente de proteção patrimonial ou para evitar mortes”, afirma o sociólogo Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF).

    Hirata destaca como traço da gestão bolsonarista o estímulo deliberado a um estado de confusão em relação ao papel das polícias – estaduais e federais. Como parte desse processo, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) passa a atuar em conjunto com as forças de segurança estaduais.

    Homicídios caíram na atual gestão, mas o movimento começou em 2017, durante o governo Temer

    No Rio de Janeiro, uma dessas operações conjuntas – realizada em julho, no Complexo do Alemão – resultou em 19 mortes. Meses antes, em maio deste ano, outra operação similar terminou com 25 mortes na Vila Cruzeiro

    As mortes em comunidades carentes do Rio de Janeiro fazem parte de um contexto mais amplo de recrudescimento da letalidade policial. Entre 2013 e 2021, o número de mortes no país decorrentes de intervenções policiais cresceu quase 178%. O pico do período ocorreu em 2020, quando 6.412 pessoas foram mortas em intervenções policiais. Bueno e Hirata citam ainda como característica do administração bolsonarista a politização das polícias.

    O plano decenal para a área de segurança pública elaborado em 2018, durante a gestão do presidente Michel Temer, foi arquivado por Bolsonaro. Um segundo plano, desenvolvido em sua presidência, também não foi implementado, recorda Samira Bueno.

    A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, chama de “entulho” as mais de 30 normas com as quais o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva terá que lidar na segurança, principalmente no que diz respeito à flexibilização do uso de armamentos.

    “O presidente Bolsonaro foi eleito prometendo um discurso de lei e ordem muito forte, de segurança pública. Ele deixa o governo sem uma política estruturada de segurança pública”, diz a especialista, que cita a flexibilização de acesso ao armamento e a ingerência nas forças de segurança federais como legados ruins.

    Para ela, “a mesma energia” investida na questão dos armamentos não foi usada para fortalecer as instituições policiais, no planejamento, ou na articulação com os Estados. Sobre as forças federais de segurança, ela critica as trocas de comando na Polícia Federal, a mudança de escopo na Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a própria atuação do Exército, responsável pelo controle de determinados armamentos. “No departamento de produtos controlados, que faz a fiscalização das armas, houve clara ingerência política, jogando fora análises e pareceres técnicos para fazer valer a vontade do presidente”, diz. “Esse é um legado. Deixamos as forças de segurança federais muito menos republicanas”,

    Carolina interpreta que algumas práticas do atual governo forçaram o posicionamento de órgãos de controle. Como exemplos, ela cita uma auditoria no Tribunal de Contas da União (TCU) que analisa possível ingerência do governo federal, além da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de submeter ao acompanhamento do Ministério Público policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia. “Os poderes foram instados a agir para coibir excessos”, diz.

    Sobre a redução das taxas nacionais de homicídios, Carolina afirma que ela aconteceu “apesar” da flexibilização do controle de armas e “não por causa dela”. “Os Estados que mais reduziram os homicídios adotaram políticas específicas de segurança”, frisa, pontuando que em 11 unidades da federação há atualmente a aplicação de metodologias de gestão baseada em resultado no setor de segurança. Segundo ela, houve uma série de razões para a queda dos homicídios, inclusive menos conflitos entre facções criminosas.

    Murilo Cavalcanti, secretário de Segurança Cidadã do Recife, diz que o governo Bolsonaro é exemplo único de uso do armamento da população como política de segurança. “Isso vai dar um trabalho enorme ao governo Lula. Qualquer um que ganhasse teria a mesma dificuldade”, afirma, defendendo um “revogaço” de medidas para estancar o processo de compra de armas pela população.

    Segundo ele, a pandemia também foi um fator a contribuir para a redução dos homicídios, uma vez que houve redução drástica na circulação de pessoas.

    “Não houve política de segurança pública. Houve um discurso ideológico para convertidos, um discurso vazio, sem consistência científica”, afirma Cavalcanti, que critica a falta de planejamento por parte do Estado.

    O Ministério da Justiça e Segurança Pública enumerou diversas iniciativas realizadas nos últimos quatro anos em apoio ao setor de segurança. Em nota enviada ao Valor, a pasta citou o fortalecimento da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG) e ressaltou a existência, atualmente, de 175.503 perfis genéticos inseridos no Banco por Laboratórios de Investigação do país. “Essa inserção auxiliou em mais de 4.083 mil investigações criminais”, diz o ministério, acrescentando que nos últimos anos, foram investidos mais de R$ 192,4 milhões.

    O ministério também citou a implementação, no ano passado, do Sistema Nacional de Análise Balística (Sinab), que busca integrar todas unidades da federação e a Polícia Federal para aumentar a efetividade dos exames de comparação balística. O investimento na ferramenta foi de R$ 123 milhões.

    Outro legado citado pelo ministério foi o programa Pró-Segurança, que já publicou cinco normas técnicas referentes a pistolas, armas de incapacitação neuromuscular, coletes de proteção balística, carabina e fuzis e submetralhadoras.

    “Essa política estimula a ampla competitividade, o desenvolvimento do mercado nacional, a desburocratização e assertividade nas licitações públicas. Também traz celeridade e eficiência às compras governamentais realizadas com recursos públicos da União”, diz a nota enviada pelo ministério.

    Outra ferramenta criada pelo governo foi o CidadeSusp, programa que transfere e disponibiliza metodologias e soluções tecnológicas para que os municípios atuem, efetivamentente, como integrantes estratégicos do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). As informações serão reunidas em Observatórios Municipais de Segurança Pública.

    Também foi instituído o Pro-Mulher, que contemplou mais de 127 mil mulheres em ações que abrangem o suporte psicológico às vítimas em situação de violência; medidas para remodelar padrões de comportamentos violentos; capacitação de profissionais das redes de assistência (saúde, educação e assistência social, públicas e privadas); organização de serviços e redes de atenção para o trato deste fenômeno, entre outras.

    Houve também a criação do Programa Nacional de Apoio à Aquisição de Habitação para Profissionais da Segurança Pública, o Habite Seguro, que promove acesso facilitado aos agentes de segurança pública do país para a aquisição da casa própria, por meio de concessão de subsídios econômicos e outras condições especiais, a critério do agente financeiro.

    Desde que foi instituído, em 2021, já foram firmados mais de 2,7 mil contratos de financiamento. Na modalidade subsídios, foram R$ 17,1 milhões; em financiamento, R$ 552,9 milhões. Por fim, o ministério cita o fortalecimento da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), com mais de 150 operações em apoio aos órgãos federais e estaduais.

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