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    NOTÍCIAS

    Usuário é foco de 40% das ações policiais que deveriam combater tráfico de drogas

    30 de julho de 2018 às 02:37

    Matéria originalmente publicada na Ponte, com repercussão no El País e no Justificando.

    Estudo do Instituto Sou da Paz aponta falhas no combate ao crime; encarceramento afeta especialmente mulheres: 62% estão presas com acusações ligadas às drogas

    Um levantamento feito pela Instituto Sou da Paz analisou dados de ocorrências relativas à drogas no estado de São Paulo, entre janeiro de 2015 e setembro do ano passado. O resultado e mostra que a política de segurança e combate ao tráfico em ação atualmente tem apresentado equívocos. Um deles, conforme apontou o gerente de sistemas de justiça e segurança pública do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, é que 4 em cada 10 ocorrências de drogas atinge o usuário, não o traficante.

    A análise é de que, até por isso, o número de apreensões cresceu, mas a quantidade de drogas em circulação no país não necessariamente diminuiu. O estudo analisou mais de 200 mil ocorrências registradas no período, que corresponderam a retirada de 3% a 5% da droga em circulação. Em metade dos casos, a massa apreendida de droga foi inferior a 40 gramas.

    “A polícia precisa focar em combater a violência, em quebrar as estruturas do crime organizado por trás da grande economia da drogas e não atacar o varejo. Não estou dizendo que a polícia deva fechar o olho, ou ignorar o tráfico. Mas é preciso racionalizar a estratégia para ter melhores resultados”, afirma Bruno Langeani.

    O Brasil vive hoje a disputa do controle de rotas de drogas entre, basicamente, duas grandes facções – CV (Comando Vermelho) e PCC (Primeiro Comando da Capital) – e suas ramificações ou mesmo apoio de grupos criminosos menores em cada estado. A dinâmica nacional do tráfico gira em torno desta lógica.

    “Temos mais da metade das ocorrências tirando poucas gramas de circulação, que não impactam venda, não impactam o consumo e sequestram recursos da polícia que poderiam estar sendo usados de outra forma. Tanto na interceptação de grandes carregamentos, quanto para lidar com crimes violentos que apavoram a sociedade”, explica Langeani. “Roubos e estupros sobem em São Paulo, por exemplo, enquanto policiais e viaturas estão estacionados em Distritos Policiais para registrar flagrantes de maconha com peso equivalente a dois bombons. Não podemos mais fechar os olhos para isso”, criticou.

    O volume de ocorrências envolvendo posse de drogas para uso pessoal cresceu significativamente, de pouco mais de 20 mil ocorrências por ano em 2005 para mais de 32 mil em 2016, o maior valor da série. Em 2017 há uma queda para 26,9 mil ocorrências.

    Embora o estudo foque o estado de São Paulo, por ser o que responde a maior quantidade de ações contra drogas (22%), dados de 2014 apontam que os gastos nacionais de repressão policial foram de aproximadamente R$ 406 milhões no ano. O montante empregado no sistema prisional é superior a R$ 3,3 bilhões.

    Para Langeani, ao contrário do que tem ocorrido, a lógica no combate deveria ser quebrar as estruturas do crime organizado. De acordo com o estudo, mais da metade das apreensões de tráfico de crack, por exemplo, correspondem a volumes menores do que dez gramas. A maior parte dessas ocorrências acontece na região da Luz, local conhecido como Cracolândia. “As operações na região da Cracolândia dão bastante a dimensão do que falamos sobre mercado do varejo de drogas. Essas gramas, não significativas para o contexto geral da massa de droga em circulação, ficam nas mãos de usuários e de microtraficantes”, ponderou o gerente do Sou da Paz.

    Integrante da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas e coordenadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas  e preside o COMUDA -SP (Conselho Municipal de Política de Álcool e Drogas de São Paulo), Nathália Oliveira critica a ausência de uma lógica investigativa em detrimento de uma ação repressora. “Fazer policiamento ostensivo dentro de um território só porque é cena de uso, não é inteligente, porque não se verifica antes onde essa droga é produzida, como ela chega nesse território”, argumenta a respeito das ações na região da Luz.

    “O policiamento deveria barrar a chegada de droga no território e não coibir as pessoas que estão fazendo uso, porque essas pessoas não são as pessoas que participam da estrutura do crime organizado. É um investimento equivocado do orçamento público. Quando você pega o usuário, o tráfico de drogas já aconteceu”, afirma Nathália.

    Mudança na lei

    Em 2006, houve alteração na política de combate à droga quando o crime de tráfico sofreu um endurecimento das penas. O porte para uso deixou de implicar prisão, mas não deixou de ser crime, aplicando uma despenalização, mas não uma descriminalização. “A mudança na lei de drogas de 2006 buscava tirar pena de prisão do usuário e endurecer para o traficante. De fato podemos dizer que o número de usuários conduzidos a delegacia foi reduzido, mas ainda envolvem 4 em cada 10 ocorrências. Precisamos tirar o uso de drogas da esfera da justiça criminal. Polícia e processo judicial não ajudam usuário, sistema de saúde, sim”, explica o gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.

    O principal efeito visível foi o aumento de pessoas encarceradas pelo crime de tráfico, passando de 47 mil em 2006 para 176.691 em junho de 2016, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional). As mulheres são as principais vítimas do encarceramento por causa da droga: 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem ou já foram condenadas por crimes ligados ao tráfico.

    O estudo também analisou a participação das três drogas – cocaína, maconha e crack – no montante de ocorrências e verificou que mais de 50% dos casos envolve exclusivamente maconha (tanto apreensão enquadrada em tráfico, quanto posse). “Em outras palavras, um cenário em que a maconha deixe de ser ilegal pode derrubar pela metade as ocorrências de tráfico e posse para uso que entram no Sistema de Segurança e Justiça Criminal”, aponta o relatório.

    Para Nathália, muito além de quebrar as estruturas do crime organizado – que é o grande operador do tráfico -, é preciso entender quem está ganhando com a manutenção da atual política de combate às drogas. “O crime só é organizado porque ele se organiza dentro e fora da estrutura do Estado. Não é possível um sistema tão corrupto quanto a circulação de substâncias ilegais, que não conta com colaboração de dentro do Estado”, provoca.

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