Letalidade policial em SP é a menor desde 2005, mas mortes cometidas por policiais de folga se mantêm estáveis há quatro anos. No total, 419 pessoas foram mortas pelas polícias de SP no ano passado
Reportagem publicada pela Ponte (clique para acessar o texto original)
Gabriel Soldo dos Santos Silva, Lucas Henrique Vicente, Luiz Fernando Camargo, Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Júnior, MC Neguinho JM, Leandro Lo, Nicolas Gualberto Silva, Bubbakar Dukereh, Paulo Henrique Silva Neves e Kaique de Souza Passos. Esses jovens, que tiveram suas histórias contadas pela Ponte, são algumas das 419 pessoas mortas pelas polícias Militar e Civil do estado de São Paulo em 2022.
O número é o menor registrado na série histórica desde 2005, considerando as ocorrências que envolvem policiais civis e militares, durante o serviço e na folga, mas ainda representa mais de uma vítima por dia pelo braço armado do Estado. Em relação a 2021, quando foram contabilizadas 570 mortes, a queda foi de 26,4%.
À imprensa, o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, se esquivou de comentar sobre as ações da gestão anterior e repudiou a expressão “letalidade policial”, que chamou de “letalidade criminal”. “O que a maioria chama de letalidade policial, eu chamo de letalidade criminal porque o policial é a primeira vítima a sofrer um disparo. Eu entendo, mas chamo de letalidade criminal e é testemunho de quem, infelizmente, já viveu na ponta da linha”, declarou.
Ele também disse que a nova gestão tem o “compromisso de não estimular o confronto”. “Nós sabemos que o policial, no final das contas, além de ser a primeira vítima de um confronto, isso gera um processo que permeia a vida por anos e anos do policial, gerando, inclusive, prejuízos financeiros, hoje não mais porque, justiça seja feita, o governador anterior [Rodrigo Garcia, em 2022] fez um decreto por meio da Defensoria Pública”, disse, se referindo ao convênio assinado para que defensores públicos possam atuar na defesa de policiais que cometerem crimes em serviço, o que é criticado por movimentos sociais e algumas entidades de direitos humanos. Segundo Derrite, já são 131 processos em que defensores atuam na defesa de policiais.
“Nós nos preocupamos e muito com todo e qualquer homicídio”, garantiu. “Se eu pudesse, durante a minha gestão, se forem um, dois, três, quatro anos, enquanto eu puder ficar, se pudesse não ter nenhum confronto, seria o cenário ideal para a gente.”
O secretário reconheceu que o projeto de câmeras nas fardas da PM influenciou na redução das mortes, mas deu mais destaque ao “treinamento dos policiais” como aspecto fundamental nesse índice, o que é contestado pelas especialistas entrevistadas pela Ponte.
“Se fosse só uma melhoria de procedimentos, de treinamento, como o secretário defendeu, a gente poderia acreditar que isso poderia também mudar [nas mortes] fora de serviço, teria algum tipo de consequência”, sinaliza Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Isso porque as maiores reduções nos últimos dois anos aconteceram nas mortes praticadas pela PM durante o horário de serviço: 256 e 423, em 2022 e 2021, respectivamente. Já nos casos fora de serviço, os números se mantiveram praticamente os mesmos desde 2019, na faixa de 120 mortes.
Para ela, as câmeras nas fardas representaram um “elemento central” para redução da letalidade, mas ressaltou que a tecnologia “não é uma panaceia” e que sozinha não se garante esse resultado. “Se o policial está melhor treinado e sabe lidar melhor com determinada situação de alto risco, então pouco importa se ele está em serviço ou fora, mas se há a expectativa de o trabalho estar sendo filmado, monitorado e de algum modo controlado, se é accountability que é o elemento central para entender essa decisão de usar ou não da força letal, aí é a câmera que me parece ser o elemento central para entender essa redução e por isso é um programa muito importante para ser mantido”, analisa.
Samira enfatiza o papel das Corregedorias e do Ministério Público para elucidação dos casos, além da cobrança da sociedade civil e da imprensa. “Não adianta você ter a câmera se ninguém está observando essas imagens”, pontua. Um exemplo revelado pela Ponte no ano passado foi a morte de Kaique Passos, baleado com sete tiros por dois PMs no Guarujá, litoral paulista, que taparam suas câmeras no momento dos disparos. Inicialmente, o MP não pediu as imagens e pediu o arquivamento da apuração do homicídio. Só depois que teve acesso, quando a investigação na Justiça Militar foi remetida à Justiça Comum, houve a denúncia e prisão dos policiais.
Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz, também destaca um conjunto de medidas que foram adotadas desde 2020 em meio a uma resposta aos diversos casos de violência policial que repercutiram no Brasil. “A gente fez aquela nota técnica que analisou as medidas implantadas, as Comissões de Mitigação de Não Conformidade, que é fazer uma discussão em cada caso em que a força letal é usada, o comandante local para e faz uma análise sobre o caso para saber se houve abuso ou se foi uma questão de procedimento, e o simples parar para discutir [sobre mortes praticadas por policiais] já dá um sinal para a tropa de que não é uma coisa banal. Teve todo um discurso também de apurar os casos claramente abusivos e ter as respectivas investigações e punições”, exemplifica.
As duas especialistas também indicam uma melhoria no suporte psicológico dos policiais e investimento em armas menos letais, como o taser (eletrochoque), que ajudaram a diminuir a letalidade, mas especialmente a decisão política do governador e da corporação de implementar essas ações.
Já sobre as mortes fora de serviço, a diretora do Fórum entende que os casos não deveriam ser categorizados com a premissa inicial de serem legítimas porque essa nomenclatura “enviesa a apuração”, já que o policial é primeiramente tratado como vítima. “O que é a ‘morte decorrente de intervenção policial’? É aquela que se pressupõe legítima defesa, não se classifica como homicídio doloso porque se supõe que não houve crime. Se ele está fora do horário de serviço, sem farda e mata alguém, por que a gente está pressupondo que isso foi em legítima defesa? Se fosse uma decisão institucional do governo reduzir [as mortes fora de serviço], o primeiro a se fazer seria criar um protocolo de que policial que se envolveu em qualquer ação que resultou em morte fora do horário de trabalho, seria homicídio doloso, não só pra fins estatísticos, mas para registros de ocorrência”, afirma. “Isso melhoraria significativamente as investigações”.
Na tese de doutorado de Samira Bueno, que aborda as motivações que levam policiais a matar, são indicados alguns critérios para avaliar se a letalidade policial é excessiva. Um deles é a proporção de mortes de civis e mortes de policiais. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam de que o ideal é a proporção de 10% de mortes pela polícia no total de homicídios, e os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que índice maior de 7% é considerado abusivo.
Na comparação com os homicídios dolosos, as mortes praticadas pelas polícias representaram 12% em 2022, índice alcançado em 2013. As pesquisadores relembram que naquele ano a Secretaria de Segurança Pública emitiu a resolução nº 5 de janeiro 2013, que determina que os policiais são proibidos de prestar socorro à vítimas em casos de lesões e mortes decorrentes de intervenção policial e devem chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) para realizar o atendimento. No entanto, aumentaram os casos de mortes por policiais na folga.
A norma veio após uma onda de violência em 2012 no estado, que começou quando, em maio daquele ano, policiais da Rota mataram seis pessoas no estacionamento de um bar na Penha, na zona leste da capital. Na época, uma testemunha disse que um suspeito foi preso no local e executado na Rodovia Ayrton Senna, tendo sido levado para o hospital pelos próprios policiais já sem vida. Além disso, o então secretário Antonio Ferreira Pinto foi exonerado e o ex-procurador Fernando Grella Vieria assumiu em seu lugar.
Por outro lado, se as mortes pelas polícias caíram, os homicídios dolosos cresceram 7% na comparação de 2021 com 2022. Contudo, historicamente, São Paulo tem as menores taxas de homicídio por 100 mil habitantes. Considerando a estimativa populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2021, de 46,6 milhões, já que o Censo de 2022 ainda não foi concluído, a taxa é de aproximadamente 6,5 homicídios por 100 mil habitantes no estado.
Para Carolina Ricardo, ainda é difícil traçar hipóteses tendo em vista a baixa taxa de esclarecimento dos casos, que no estado equivale a 37%, segundo estudo do Instituto Sou da Paz. “A questão do crime organizado pode ter um papel [no baixo índice]. Nos dados da Secretaria da Segurança Pública que mostra as motivações, houve um aumento dos conflitos interpessoais, que são motivações mais banais. Então é muito provável também por um aumento da circulação de armas de fogo, mortes praticadas por CACs [colecionadores de armas de fogo, atiradores desportivos e caçadores], porque a arma se torna um combustível letal no conflito”, indica. “Justamente por isso a gente precisa melhorar a capacidade da polícia investigar, não só a Polícia Civil, a integração com a Polícia Militar também com a troca de informações”.
Mortes de policiais
As mortes de policiais civis e militares também caíram. O número de policiais mortos em serviço é o menor desde o início da série histórica, em 2001, embora, no acumulado com os mortos no horário de folga, tenha havido aumento: de 25, em 2021, para 37 em 2022.
Samira Bueno avalia o dado de forma similar ao da letalidade, de que a câmera interferiu nos casos em que o policial está trabalhando, uma vez que nas folgas o equipamento não é utilizado. “Tentar argumentar que a câmera é ruim para o policial é completamente descabível, porque ela está protegendo a vida do policial, ele está se expondo menos a risco, está morrendo menos, o que reforça o argumento de que muitos defensores do pessoal pró-bala, pró-‘bandido bom é bandido morto’ tentavam refutar de que letalidade e vitimização não são faces de um mesmo processo. O policial que mata muito também está mais exposto ao risco”, analisa. “Policial quando tem mais controle dos procedimentos de uso da força, e reduz substantivamente esses meios, também reduz as chances de ele ser vítima de um assassinato”.
Carolina Ricardo, do Sou da Paz, concorda e que é preciso apurar as circunstâncias que levam policiais a serem assassinados fora do trabalho. “Será que o policial está fazendo algum bico ou acaba agindo sem a devida segurança? Os policiais têm protocolos para agir, mas se ele está sozinho, de folga, a chance de ele ser morto é muito maior”, avalia. Segundo o portal Metrópoles, com dados da Secretaria de Segurança Pública, ao menos 10 policiais militares de folga foram mortos ao tentar reagir a roubos no estado. Também há ocorrências em que o policial é morto em um assalto ou tentativa de assalto ao ser reconhecido como policial.
Feminicídios e estupros
Os feminicídios alcançaram o maior patamar desde 2015, quando foi incorporada no Código Penal como uma qualificadora do homicídio doloso, ou seja, a mulher sendo morta por uma questão de gênero. Foram 195 vítimas em 2022, o que representou um aumento de 375% em relação a oitos anos atrás.
Para Samira Bueno, uma hipótese é de que a violência política que contaminou diversos setores, inclusive relações pessoais. “A gente teve o crescimento da violência em diferentes esferas, tem a ver com esse contexto político, econômico. Não identifiquei a interrupção de nenhum serviço nesse período, então acho que tem a ver por uma questão comportamental em que as pessoas estão mais raivosas, mais violentas, mais intolerantes e isso faz crescer [o número] porque estamos falando de um crime que, de 9 em cada 10 casos acontece em decorrência de violência doméstica. O feminicídio é íntimo em São Paulo, em maioria”, pontua.
“Essa violência política que a gente vem vendo de forma tão contundente nas redes sociais, o medo de você colocar uma camiseta vermelha e ser acusado de ser comunista, acho que tudo isso aflorou comportamentos mais brutos. Se o futebol, que é um momento de celebração, interfere nos casos de violência doméstica, por que seria diferente com a política?”, questiona, em referência a um estudo do FBSP que comparou dias de jogos dos times das cidades com os casos de violência doméstica.
Para a diretora do Sou da Paz, o governo precisa “criar políticas mais sólidas de enfretamento à violência contra a mulher”. “O feminicídio é uma crônica de uma morte anunciada porque muitas vezes a vítima já fez uma denúncia de um outro tipo de violência e o sistema não funcionou para atendê-la ou para afastar essa mulher do agressor e protegê-la contra essa morte”, avalia Carolina Ricardo.
“A gente precisa de uma política intersetorial que consiga tirar essa mulher de uma situação de violência não letal e diminua o risco de um feminicídio. Precisa ter política para os agressores, que podem praticar violência com outras mulheres, precisa ter políticas de renda porque muitas vezes a mulher não consegue romper com o agressor porque tem uma dependência econômica, políticas de acolhimento para que essa mulher se fortaleça e possa romper os ciclos de violência.”
Já nos casos de estupro, houve um aumento de 7,3% em comparação a 2021. Dentro dessa categoria, a maioria dos casos são de estupro de vulnerável, que são 9.716 dentro do total de 12.615, e cresceram 6,8% no mesmo período.
As pesquisadoras alertam que é difícil mensurar se houve de fato um aumento de casos ou mais registros que foram feitos, já que o período de pandemia, em que os dados foram menores, na verdade, podem indicar subnotificação.
Um ponto que Samira Bueno enfatiza é que na pandemia houve a implementação da Delegacia Eletrônica, em 2020, em que o boletim de ocorrência para determinados crimes poderia ser feito de forma online, inclusive de violência doméstica, mas não se aplica para o estupro, por exemplo. “A Delegacia Eletrônica não aceita casos de estupro por um motivo muito simples: violência sexual exige necessariamente exame de corpo de delito”, explica. “Imagino que parte dessas vítimas não fossem até uma delegacia presencialmente.”
A diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também analisa que o perfil das vítimas de estupro de vulnerável geralmente são menores de idade e o confinamento pode ter dificultado a denúncia e a interrupção da violência.
“Em 2020 e 2021, as crianças ficaram por um longo período longe da escola, com aulas interrompidas ou aulas virtuais, e é justamente na escola que você tem um profissional que em geral identifica se a criança está sofrendo algum tipo de abuso. Todas as pesquisas que fizemos mostram que o abuso parte do pai, do padrasto, do primo, do avô, é sempre de um familiar que tem uma relação de proximidade com essa criança”, aponta.
Carolina Ricardo, do Sou Paz, concorda e sinaliza que é uma discussão complexa e que precisa de um aprimoramento do serviço público para ajudar a identificar os casos e criar redes de apoio que protejam as vítimas. “Acho que esse dado [de 2022] tem a ver com a volta de as pessoas poderem circular, as crianças voltaram para as escolas, irem em postos de saúde, e os registros começarem a aparecer. A minha sensação é de que os estupros nunca deixaram de acontecer em 2020 e 2021. Pelo contrário, podem ter acontecido até mais, porque justamente as pessoas estavam trancadas com seus agressores dentro de casa e a gente não tinha acesso ao registro e agora a gente tem”, avalia.
Crimes patrimoniais
Todos os crimes patrimoniais cresceram na comparação entre 2021 e 2022: furto (+20,1%), furto de veículo (+16,6%), roubo (+23,1%), roubo de veículo (+8,9%) e extorsão mediante sequestro (+143,5%).
Tanto Samira Bueno quanto Carolina Ricardo entendem que nos últimos três anos houve uma nova configuração desses tipos de crimes. “2020 e 2021 foram muito atípicos em relação a esses crimes porque as pessoas estavam em casa, então não foi a motivação do roubo que sumiu, o que sumiu foi a circulação de pessoas e bens”, analisa Ricardo. “A gente vive o fenômeno, que tem a ver com a extorsão mediante sequestro, que é a questão do uso do celular e dos aplicativos de banco, do Pix, que eu acho que abriu uma nova oportunidade para esse tipo de violência. A gente sabe que o que tem sido muito roubado é celular, e essas extorsões, que são um sequestro relâmpago, são para fazer transações pelo celular e acessar o banco. Agora também tem os golpes do Tinder, em que as pessoas vão para encontros e acabam sendo sequestradas”, explica.
Essas estatísticas foram, inclusive, destaque na apresentação feita pela Secretaria de Segurança Pública. O secretário Guilherme Derrite disse que vai criar um grupo de trabalho com instituições financeiras e empresas responsáveis pelos aplicativos de relacionamento com o objetivo de criar práticas que evitem golpes e crimes por meio de transações digitais. Também disse que reforçaria o policiamento em determinadas áreas e a atuação da Polícia Civil para identificar as quadrilhas.
Assim como escreveu em artigo para a Ponte, a diretora do Sou da Paz avalia que é importante criar mecanismos de segurança com instituições bancárias e aplicativos, mas reitera que não é apenas o policiamento que vai diminuir a incidência de crimes patrimoniais e que outros serviços públicos precisam ser ofertados. “A ocorrência desses crimes gera medo, as pessoas querem resposta imediata e o que acontece na prática é que a PM acaba sendo massa de manobra, ‘vamos fortalecer o patrulhamento onde acontece muito’, que é importante, mas os crimes migram e fica aquela coisa de enxugar gelo”, critica.