155 pessoas foram mortas por policiais militares em serviço nos primeiros seis meses deste ano; especialistas criticam atuação do governo na área
Reportagem feita pela Ponte Jornalismo (clique para acessar texto original)
As mortes provocadas por policiais militares em serviço subiram 26% no primeiro semestre do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos). No mesmo período do ano passado foram registradas 123 mortes contra 155 em 2023.
O aumento ocorre mesmo com a adoção das câmaras corporais pela PM paulista, o que para especialistas reforça a necessidade de ampliação de políticas de mitigação da letalidade policial e uma reformulação da corporação visando a profissionalização do trabalho.
O uso de câmaras corporais faz parte do programa Olho Vivo, da própria Polícia Militar, criado em 2020. Até o final de 2022, 62 dos 135 batalhões da PM usavam o equipamento nas fardas. O uso da tecnologia teve impacto na letalidade policial: de 2020 até o ano passado, o número de ocorrências caiu 76,2% quando analisadas mortes por PMs em serviço (quando o uso das câmaras ocorre).
Para o pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Dennis Pacheco, as câmeras são equipamentos que se mostraram exitosos, mas sozinhas não são capazes de zerar a letalidade.
“As câmeras não são a solução tecnológica que vai resolver o problema da letalidade policial no Brasil, em São Paulo, ou seja onde for. Elas funcionaram como parte de um programa que congregava elementos políticos, administrativos e tecnológicos e de governança”, comenta Pacheco.
Ele avalia que a gestão de Tarcísio Freitas não atuou para reforçar o programa Olho Vivo e nem em outras políticas públicas da mesma linha. “A entrevista do secretário de Segurança Pública no Roda Viva, que é um programa de grande repercussão e que tem sido um momento de fala pública dele de maior visibilidade, demonstra um alinhamento a um modelo de segurança pública que a gente sabe que tanto não é segurança pública, quanto não é baseado em evidências, quanto mantém o aparato estatal de vigilância de corpos, negros, jovens, periféricos. O resultado é esse: a alta da letalidade policial”,
Guilherme Derrite participou do programa Roda Viva, da TV Cultura, em abril deste ano. Quando questionado sobre o que estava fazendo para combater o racismo na corporação, negou que o racismo esteja presente de forma institucional nas polícias.
Coordenador de projeto do Sou da Paz, Rafael Rocha, considera os dados sobre letalidade na gestão Tarcísio alarmantes. Ele cita também o aumento de 28% na letalidade policial considerando as polícias Militar e Civil.
“É muita coisa. Foram 38 mortes a mais do que ano passado, sendo que não houve nada fora da atuação cotidiana das polícias. A gente não teve um novo confronto com o PCC em nível macro ou alguma questão mais grave de confronto”, afirma Rocha.
Ele chama atenção para o fato de o aumento da letalidade ter ocorrido com policiais em serviço. “Embora esteja falando dos mesmos agentes, as dinâmicas são muito distintas. A dinâmica da folha envolve bico, tentativa de reação, questões pessoais de conflitos. Já as mortes em serviço dizem do patrulhamento ostensivo mesmo. Esse aumento em serviço chama um alerta porque é justamente em serviço que as medidas de controle do uso da força, de mitigação e as câmaras estão em operação”, comenta.
O pesquisador fala do enfraquecimento dos mecanismos, como as câmeras, durante os primeiros seis meses de Tarcísio. Ele explica que o Olho Vivo não foca só no equipamento, mas também em mecanismos como a Comissão de Mitigação, que atua na avaliação de PMs envolvidos em ocorrências com mortes. Contudo, o que se viu foi a debilidade da atuação do programa no comando do bolsonarista.
“A gente está vendo o enfraquecimento desses mecanismos, principalmente se nós avaliarmos que as mortes civis não só aumentaram 28% no estado, mas elas aumentaram 60% na capital, e a capital é a macro região que tem a maior concentração de batalhões do programa Olho Vivo”, diz Rocha.
Os números do governo Tarcísio também estão acima do patamar indicado por especialistas para apontar excessos na letalidade policial. O cálculo compara o número de mortes pela polícia com o total de homicídios dolosos. Assim como a reportagem mostrou no mês passado, o número de homicídios dolosos segue em queda, sendo que passou de 1454, no primeiro semestre do ano passado, para 1391 (-4,3%) no primeiro semestre de 2023. Só em junho foi de 235 para 205 (-12,7%).
Estudos do sociólogo Ignacio Cano consideram que a proporção ideal é de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos. A São Paulo do carioca Tarcísio de Freitas tem índice de 13,7%
Outro comparativo é com o número de mortes de policiais. De janeiro a junho deste ano, foram 15 vítimas, sendo oito na folga. Já no mesmo período do ano passado, foram 17 policiais civis e militares mortos, sendo 13 na folga.
Considerando as 221 vítimas com os 15 policiais mortos neste semestre, para cada policial morto, foram cerca de 14 pessoas que tiveram a vida tirada pelo braço armado do Estado.
O que diz o governo
A Ponte entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo solicitando uma entrevista com o secretário Guilherme Derrite e com o governo Tarcísio. Também foi pedido uma resposta sobre o aumento das mortes. A pasta encaminhou a seguinte nota:
A SSP esclarece que, de acordo com critérios técnicos, os casos de MDIP em serviço e as ocorrências envolvendo policiais de folga não devem ser equiparadas ou comparadas, vez que apresentam dinâmicas completamente distintas.
No primeiro semestre de 2023, as forças policiais detiveram um total de 95.394 pessoas, representando um aumento de 8,4% em relação ao mesmo período do ano anterior, sendo que em 99,76% dessas ocorrências não houve registro de mortes em confronto. Os números mostram que a principal causa das mortes decorrentes de intervenção policial não é a atuação da polícia, mas sim a opção do confronto feita pelo infrator, que subjuga as vítimas colocando-as em risco assim como todos os participantes da ação. Todos os casos dessa natureza são rigorosamente investigados pelas respectivas corregedorias, encaminhados ao Ministério Público e julgados pelo Poder Judiciário.
A Pasta continua investindo de forma contínua no treinamento do efetivo e na implementação de políticas públicas para reduzir as mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP), que incluem o aprimoramento constante dos cursos e treinamentos.