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    Opinião | Open Democracy | A democracia não está garantida no Brasil em face do “policialismo”

    10 de outubro de 2023 às 01:03

    A forte politização das forças policiais que ocorreu durante o governo de Bolsonaro e continua até hoje enfraquece a democracia

    Artigo escrito pela diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, publicado pelo Open Democracy, (clique para acessar o texto original)

    Muitos brasileiros têm acompanhado com expectativa as investigações sobre a tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro deste ano. O evento foi descrito como um ataque às sedes dos três poderes do Estado, promovido por uma onda de militantes extremistas descontentes com a derrota eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro e com o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. O julgamento contra alguns deles já começou no Supremo Tribunal Federal do Brasil. Foi um atentado grave, que colocou em risco a democracia brasileira, mas inicialmente sem contornos muito claros quanto aos atores que de fato participaram da aventura golpista.

    Mais de sete meses depois, os vínculos profundos entre esses manifestantes extremistas, o envolvimento de membros das Forças Armadas e a participação decisiva das forças policiais estão cada vez mais evidentes. Há investigações em todas as frentes: no Supremo Tribunal Federal; na Polícia Federal; no Legislativo (uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso Nacional e outra na Câmara Legislativa do Distrito Federal) além de uma investigação do próprio Exército Brasileiro.

    Em suma, pode-se dizer que a democracia brasileira vence eleitoralmente, porém o episódio de 8 de janeiro reafirmou um legado que vinha se fortalecendo nos últimos quatro anos: o sequestro das forças de segurança do país pela política.

    Há fortes indícios de omissão por parte da Polícia Militar do Distrito Federal na invasão da sede dos três poderes em 8 de janeiro, que resulturam nas prisões do comandante-geral da corporação, Klepter Rosa, e de outros seis oficiais. De acordo com as investigações, o comandante e esses oficiais não agiram para impedir o vandalismo devido ao seu alinhamento ideológico com os golpistas e até tentaram prejudicar a investigação dos atos criminosos. Esse foi um incidente muito grave, emblemático de como a polícia agiu sob premissas ideológicas e políticas e como não agiu diante de uma tentativa de golpe de Estado.

    Também se pode dizer que a Polícia Rodoviária Federal foi usada politicamente nas eleições ao obstruir o tráfego de eleitores nas estradas do país. Mais de 500 operações foram realizadas pela Polícia Rodoviária Federal na tentativa de impedir que os eleitores chegassem às seções eleitorais em várias estradas do país. As ações só foram suspensas à época a pedido da Justiça Eleitoral. Em agosto deste ano, quase 50 agentes da Polícia Rodoviária Federal, incluindo o então diretor-geral, Silvinei Vasques, foram presos pela Polícia Federal após uma investigação sobre a interferência no segundo turno das eleições.

    Independentemente dos resultados das investigações e dos futuros julgamentos, está claro que o Brasil tem uma importante tarefa pela frente: o processo de incutir princípios republicanos nas forças de segurança.

    Como analisei em artigos anteriores no openDemocracy, nos anos de Bolsonaro, o governo interferiu indevidamente nas forças policiais e militares, politizando-as. Isso ficou evidente não apenas nos discursos e nas práticas de armamento por parte de Bolsonaro, facilitando o acesso de civis a armas de fogo e construindo um enorme contingente de apoio civil armado, em ameaça clara à democracia.

    O problema, entretanto, vai além.

    O Congresso Nacional está povoado por representantes das forças de segurança. Essa presença aumentou em cerca de 35% nas últimas eleições, com 38 deputados federais eleitos entre as forças de segurança, incluindo três oficiais do exército. Há quatro anos, eram 28 nomes. Em 2010, eram apenas quatro. O partido (PL, Partido Liberal) e o estado (Rio de Janeiro) do ex-presidente Jair Bolsonaro abrigam esses vencedores.

    O Instituto Sou da Paz – organização não-governamental brasileira que promove políticas de segurança pública, da qual sou diretora executiva – chamou esse fenômeno de Policialismo. Os esultados destes são as greves das polícias, as celebridades policiais nas mídias sociais, o crescimento das milícias e a participação de policiais nas eleições. Um estudo (2021) mostrou que quase 1/3 dos policiais brasileiros interagiram com conteúdo antidemocrático nas mídias sociais, em comparação com apenas 17% do total da população brasileira.

    Uma proporção significativa de parlamentares com formação policial acaba vendo a segurança pública de uma forma antidemocrática

    E o que há de errado com o policialismo? Por um lado, uma força policial excessivamente influenciada por políticas partidárias e eleitorais piora a qualidade do serviço prestado à população, pois se afasta do profissionalismo e do estrito cumprimento dos deveres legais para adotar estratégias de promoção política e pessoal.

    Por outro lado, Uma proporção significativa de parlamentares com formação policial acaba vendo a segurança pública de uma forma antidemocrática: crença inabalável no poder do uso excessivo da força, operações policiais de mão pesada (geralmente voltadas para as populações mais pobres e negras) e adesão a soluções simplistas no combate à violência no país.

    Outro lado do problema é que o comportamento, os valores e as ações da polícia minam a perspectiva de um policiamento técnico, profissional e republicano. Além de piorar a segurança pública, isto também ameaça a própria democracia.

    Trata-se de algo grave para um país que hoje tem mais de 700.000 policiais civis, federais e militares ativos, e sabe muito pouco sobre quem são, o que pensam e no que acreditam. Igualmente grave é o fato de que a polícia brasileira tem grande liberdade para definir padrões de policiamento, o que é fundamental para entender os riscos e o momento político do Brasil.

    Após anos de ditadura militar, o Brasil elegeu um presidente civil em 1985, mas foi somente em 1988 que uma nova constituição foi promulgada para promover o estado de direito. Estado este que apresenta sinais de corrosão democrática de 2013 até pelo menos o final do governo de Bolsonaro. De fato, o ex-presidente Jair Bolsonaro nomeou nada menos que 6.000 militares para cargos em seu mandato. Como sabemos, não é papel dos militares ocupar cargos civis em tal escala. Não é papel dos militares governar o país.

    Essa é a pesada herança que os brasileiros têm agora, mesmo que a democracia tenha vencido eleitoralmente e, pelo menos, provisoriamente. É um risco ao qual o governo federal, os governos estaduais, o Congresso Nacional e a sociedade civil devem dar atenção especial. A democracia não está garantida, já deveríamos ter aprendido isto.

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