Técnicas de produção não industrial são usadas em todas as regiões do mundo. Maioria dos artefatos não tem números de série, o que dificulta o rastreamento e até mesmo impede que sejam rastreadas
Artigo escrito pela do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, publicado pelo Nexo (clique para acessar texto original)
O homicídio é hoje a principal causa da morte violenta no mundo, sendo responsável por mais mortes do que conflitos, guerras e terrorismo juntos. A constatação vem da última edição do Estudo Global sobre Homicídios, produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês). Mais grave: não apenas é a principal causa de morte violenta do mundo como também se dá de forma desigual entre as diferentes regiões do planeta. Seu impacto sobre o desenvolvimento e os direitos humanos é particularmente brutal nas regiões com as maiores taxas de homicídios.
Conforme o relatório das Nações Unidas, sem uma ação direcionada para evitá-los, o mundo não conseguirá cumprir seus compromissos dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) para reduzir a violência e os conflitos. Está no ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes): “reduzir significativamente todas as formas de violência e as taxas de mortalidade relacionada em todos os lugares”.
Os números, no entanto, mostram uma realidade desalentadora. Em 2021, foram 458 mil homicídios em todo o mundo, dos quais 81% das vítimas eram homens e 19%, mulheres. A taxa global de homicídios é de 5,8 por 100 mil habitantes. Na Ásia, é de 2,3; na Europa, 2,2; na Oceania, 2,9; na África, 12,7; e nas Américas, 15. Esses números já mostram uma distribuição profundamente desigual de mortes violentas entre as regiões do planeta. A África e as Américas têm uma taxa de homicídios muito maior do que as outras regiões. Em todo o mundo, 40% dos homicídios foram cometidos com armas de fogo. Na Europa, esse índice é de 12%; na Ásia, 15%; e nas Américas, 67%. (Não há dados disponíveis para a África).
Altos níveis de homicídio afetam todos os outros tipos de direitos humanos, como educação, saúde e acesso a oportunidades em geral, aprofundando desigualdades e empurrando ainda mais pessoas para situações de vulnerabilidade, como migração forçada e trabalho análogo à escravidão. Também são caminhos abertos para o uso excessivo da força pelo Estado, encarceramento em massa e outras propostas nada democráticas, ameaçando constantemente direitos civis.
Não dá para falar em elevadas taxas de homicídios sem tratar de armas e tecnologia. Destacam-se, em especial, as armas leves e de pequeno porte e outras armas não industriais, ou artesanais. Há alguns anos eram armas rudimentares. Hoje não mais. Essas técnicas de produção não industrial são usadas em todas as regiões do mundo, e a maioria não tem números de série, o que dificulta o rastreamento e até mesmo impede que sejam rastreadas.
Convém citar um relatório realizado pelo Instituto Sou da Paz, em parceria com a Small Arms Survey e o UNIDIR (United Nations Institute for Disarmament Research), que chama atenção para os riscos das armas de fogo artesanais. Elas ganharam importância tanto na sua complexidade e potencial letal quanto na disseminação de diversas formas de fabricação por todo o mundo, gerando impactos locais e internacionais. Segundo o relatório é possível encontrar seis diferentes tipos de armas de fabricação privada:
- Armas pequenas artesanais de tiro único, fabricadas em grande parte à mão e em quantidades relativamente pequenas; 2. Armas semi-automáticas e automáticas, produzidas artesanalmente, mas que exigem equipamentos mais especializados e pessoal qualificado; 3. Conversão de pistolas de alarme de “tiro em branco” e armas desativadas, de “expansão acústica” e “Flobert” “reconvertidas” em armas pequenas totalmente funcionais, capazes de disparar projéteis letais; 4. Armas pequenas montadas a partir de componentes fabricados industrialmente (incluindo receptores “parcialmente acabados” ou “80%”), montadas a partir de peças e componentes fabricados industrialmente que são traficados ou adquiridos ilicitamente; 5. Armas de pequeno porte e componentes fabricados por meio do uso de tecnologias de impressão 3D e fresagem CNC, seja com plástico/polímero ou metal; 6. Armas de pequeno porte convertidas para fogo automático por meio do uso de dispositivos de conversão.
O crime organizado se alimenta dessa produção. As armas de fogo artesanais se espalham por diversos países com uma dinâmica própria: um fluxo por terra, ar e mar, em meio a brechas legais. Os números mostram um crescimento no volume de distribuição de tal ordem que dificulta o controle, sobretudo quando estamos falando de peças e componentes mais fáceis de serem ocultados. Desse fluxo convém destacar os canais online de promoção, distribuição e pagamento: aplicativos de mensagens, mídias sociais, plataformas de vídeo e serviços de pagamento digital. Eles desempenham um papel central na promoção do tráfico de armas e na facilitação de transações.
As armas de fogo artesanais se espalham por diversos países com uma dinâmica própria: um fluxo por terra, ar e mar, em meio a brechas legais.
Falamos muito sobre a Deep Web, e esse é um problema real, mas há muito conteúdo na superfície da rede. Com uma simples pesquisa, é possível encontrar materiais que usam até mesmo descrições explícitas de seu conteúdo, sem nem mesmo tentar ocultá-lo. Podem ser encontrados facilmente catálogos de armas de fogo ilegais, negociações de preços, plantas ou instruções completas sobre como fabricar ou montar fuzis de assalto em funcionamento. Nesse sentido, vemos um grande desafio na busca de cooperação, mas ao mesmo tempo uma necessidade de melhor regulamentação das plataformas e empresas que nem sempre respondem voluntariamente e em tempo hábil.
Eis por que a fabricação e o tráfico de armas artesanais representam novo desafio com o alcance de novas tecnologias e das plataformas digitais. As plataformas digitais também potencializaram esse fenômeno, tendo se tornado meios de comercialização e, principalmente, meios pelos quais os conhecimentos de montagens desse tipo de armas de fogo são amplamente divulgados. Em um caso exemplar recente no Brasil, a operação Armas.com, realizada pela Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos), da Polícia Civil do Espírito Santo, obteve decisão judicial que determinou que o Youtube retirasse do ar mais de mil vídeos ensinando a fabricar armas caseiras, que somavam mais de 110 milhões de visualizações, com os canais totalizando cerca de 843 mil inscritos. São números e evidências nada triviais.
Diante desse problema de tamanha gravidade, é possível listar um conjunto de recomendações, apresentadas por mim durante a 82ª Reunião do Conselho Consultivo sobre Assuntos de Desarmamento da ONU. São recomendações em escala global, para as quais o Brasil precisa estar atento. Entre elas, destacam-se:
Tornar a prevenção e a redução dos homicídios uma prioridade ao abordar a violência e os conflitos no mundo, compreendendo a escala de seu impacto e seu efeito cascata sobre todos os outros direitos;
Adotar o controle de armas e o desarmamento como medidas prioritárias para reduzir os homicídios;
Fortalecer um novo caminho de trabalho focado no fenômeno das armas de pequeno porte de fabricação privada e outras não industriais como parte do desenvolvimento tecnológico no mundo das armas;
Compreender o fenômeno das armas de pequeno porte de fabricação privada e outras armas de pequeno porte não industriais de uma forma mais abrangente, incluindo as diferentes variações dentro do conceito;
Construir uma estrutura comum e compartilhada para o fenômeno, permitindo que ele seja abordado dentro dos países, bilateralmente entre os países e multilateralmente nos instrumentos existentes;
Trabalhar melhor regulamentação dessa produção e de seus canais de distribuição, levando em conta as especificidades de cada país;
Incluir as mídias sociais e outras plataformas digitais nessa regulamentação, e responsabilizá-las;
Incentivar as forças de segurança nacionais e internacionais a produzir e compartilhar dados e informações sobre o fenômeno;
Com relação à marcação, considerar os avanços tecnológicos a nosso favor, como a possibilidade existente de incluir mais informações em pequenas marcações, usar marcações mecânicas mais profundas, a possibilidade de incorporar informações em números de série, códigos QR e assim por diante;
Por fim, a coleta e o uso de dados de impacto diferencial por idade, gênero e raça para possibilitar análises desagregadas e esforços de prevenção mais direcionados.
Como afirma o documento do Sou da Paz, da SAS e da UNIDIR sobre o tema, “a globalização, a modernização e o desenvolvimento de novas tecnologias permitiram a produção de armas de pequeno porte utilizáveis por uma população cada vez maior de potenciais usuários finais ilícitos. Essas novas tecnologias também descentralizaram o campo de produção de armas muito além do que é regulamentado pelos instrumentos existentes, tornando a produção acessível a um público potencialmente ilimitado”. E mais: “Na ausência de uma resposta abrangente e coordenada, certos tipos emergentes de armas de pequeno porte não industriais correm o risco de serem negligenciados e os fatores básicos subjacentes de demanda e oferta ignorados”.
Um alerta sério para um problema novo e de efeitos trágicos para a segurança pública e para os direitos humanos.