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    Opinião | O Globo | Aos amigos do rei, as munições

    4 de julho de 2020 às 03:38

    Artigo de Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional e de Litígio Estratégico da Conectas Direitos Humanos, Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé, publicado no O Globo. Acesse o texto original.

    O preço que pagamos é cobrado em vidas.

    Na segunda-feira (29/06), a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército Brasileiro abriu uma consulta pública para que a sociedade civil faça recomendações sobre  normas de marcação de armas de fogo e munições e sobre seus dispositivos de segurança. Essas normas são fundamentais para ampliar nossas capacidades de controlar e rastrear as armas e munições, contribuindo para as investigações dos crimes violentos e para o enfrentamento do seu tráfico ilícito. Em um país onde cerca de 70% dos homicídios são cometidos por armas de fogo e onde armas de guerra são utilizadas por organizações criminosas no controle de territórios, essa é, sem dúvida, uma agenda que requer toda a responsabilidade em sua condução.

    A consulta pública acontece pouco mais de dois meses depois da publicação e revogação de três portarias do Exército sobre esses mesmos pontos, e que incluíam melhorias recomendadas pelo Tribunal de Contas da União, que desde 2018 aponta falhas no controle feito pelo Exército. No dia 17 de abril, um dia depois da publicação das portarias, o presidente Jair Bolsonaro anunciou a revogação dos atos em suas redes sociais. Essa revogação está sendo contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) e também deu origem a uma ação civil pública proposta pelo  Ministério Público Federal (MPF).

    Como organizações da sociedade civil que há décadas atuam na construção de um país mais seguro e inclusivo, estamos na linha de frente daqueles que defendem a participação social na elaboração de nossas políticas. Sabemos que o dia a dia da democracia passa pelo diálogo e pela construção de consensos mínimos. Mas não é possível aceitar que os canais de diálogo e construção coletiva sejam subvertidos para irem na contramão do compromisso com o interesse público e com a proteção da vida da população. 

    Um dos principais grupos de apoio do atual governo são os defensores da flexibilização do controle de armas e munições no país. Desde janeiro de 2019, lobistas e representantes da indústria de armas estiveram em mais de 70 audiências e reuniões com o alto escalão do governo federal. Abrir uma consulta pública sobre um texto que de antemão já exclui pontos fundamentais para o controle de armas e munições — durante apenas cinco dias, em um espaço conhecido apenas por um público bastante restrito sobre um tema com alto grau de tecnicidade — não traduz o compromisso com a participação social e ainda menos com a segurança pública do país.

    As organizações que representamos participarão da consulta e apresentarão recomendações que resultam de décadas de dedicação no tema. Seguiremos acompanhando as alterações normativas sobre armas e munições e esperamos que sejam feitas de forma transparente e respeitando o devido processo administrativo: é fundamental que sejam apresentadas as análises que resultem no acolhimento ou rejeição das recomendações apresentadas nessa consulta. Permaneceremos vigilantes. 

    E, por isso, reforçamos: ao longo dos últimos 18 meses, dez decretos, dez portarias e um projeto de lei depois, o governo federal não deu nenhum passo para melhorar o controle de armas e munições no país. Ao contrário, suas decisões aumentaram o descontrole das armas e munições em circulação. No meio de uma pandemia, vemos o aumento de 111% de armas comercializadas pela Taurus e cerca de 2.000  munições sendo vendidas por hora no varejo. O preço que pagamos por essa realidade é alto e nos é cobrado em vidas: os homicídios aumentaram cerca de 11% em 17 estados brasileiros e os feminicídios registram alta de 22% em 12 estados.

    Não aceitaremos que a essa trágica conta seja somado o custo da subversão de instrumentos de participação da sociedade na orientação das políticas públicas para fortalecer uma lógica letal e antidemocrática de privilégios —e munições — aos amigos do rei.

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