Artigo de Carolina Souto, assistente de advocacy do Instituto Sou da Paz e Vanessa Menegueti, cofundadora do Instituto Governo Aberto, publicado no NEXO. Acesse o texto original.
Diante do problema de saúde pública trazido pela pandemia e das condições desumanas das unidades prisionais, é preciso garantir a publicidade dos dados e espaços de diálogo entre organizações, familiares e os governos
O governo aberto é uma agenda que ganha força a partir de 2011 com a eleição de Obama e a criação da OGP (Open Government Partnership), iniciativa internacional que reúne países, estados e cidades, para maior transparência, participação, inovação e prestação de contasdos governos democráticos.
A adesão pelo Brasil ocorre logo no primeiro momento quando o país se torna um dos membros fundadores da OGP. Sua incorporação, porém, não poderia estar descolada de nossas raízes e identidades. Para que essa agenda avance aqui, é preciso que se fortaleça como instrumento capaz de defender, garantir e pleitear novos direitos, principalmente em relação a grupos vulnerabilizados.
Nesse contexto, o sistema prisional e a segurança pública podem avançar a partir do governo aberto, já que se caracterizam historicamente pelo sigilo, autoritarismo e fechamento, apesar da submissão às mesmas diretrizes e legislações das demais políticas públicas. É possível, portanto, falar em abertura para esse tema?
O Depen (Departamento Penitenciário Nacional), responsável pelo Infopen que traz dados do sistema prisional, coleta as informações com os estados da federação que fazem a gestão das unidades prisionais estaduais. A disponibilização de dados, porém, ainda é muito aquém se comparada a outras políticas setoriais. Os sistemas estaduais de gestão prisional não são integrados e a amostra nacional fica refém desse repasse. Diversos são os relatórios disponibilizados pelo órgão que apontam resultados parciais por ausência de dados completos de todos os estados. A falta de padronização e as metodologias que se sucedem prejudicam a historicidade dos dados e os torna pouco confiáveis.
O risco à segurança da sociedade e do Estado, que inclusive autoriza o sigilo conforme a LAI (Lei de Acesso à Informação), impede a maior abertura de dados do sistema prisional e da segurança pública. Sob o manto da insegurança e do combate ao crime organizado, a questão prisional oculta dados, se nega ao diálogo e universaliza o fechamento. Sem dados disponíveis e confiáveis, não se desenham políticas públicas baseadas em evidências e tampouco é possível diagnosticar corretamente os problemas que envolvem o sistema prisional. Esse quadro fomenta o cenário violador de direitos, sobretudo porque o monitoramento das políticas públicas é comprometido.
Além disso, existem poucos espaços participativos para se contribuir com as políticas prisionais e de segurança, e os poucos previstos em lei não são instalados ou efetivos, gerando grande desmobilização. Desde governos mais autoritários aos mais progressistas, essas políticas são pensadas sob a lógica repressiva e punitivista que não favorece a participação, de modo que se percebe um histórico afastamento social desse debate. Além de que a população carcerária representa um grupo bastante vulnerabilizado — a maioria são jovens de baixa renda, sem escolaridade e negros —, que menos conhece e reivindica direitos. As demandas são por direitos tão básicos que lutar por acesso à informação, participação ou prestação de contas fica em segundo plano, o que favorece a negligência e omissão do Estado.
A chegada da covid-19 ao Brasil acentuou antigos problemas estruturais nas políticas públicas. No sistema prisional, a superpopulação, a falta de acesso à saúde e outras condições básicas escancararam o desafio de enfrentar a pandemia nessa realidade. Após os primeiros meses de pandemia, o sistema prisional já apresentava uma taxa de infecção e letalidade cinco vezes maior do que o restante do país. Apesar das resistências, em geral, a transparência, a publicização de dados e a prestação de contas trouxeram maior consistência e credibilidade aos governos para o enfrentamento da pandemia. No sistema prisional, porém, faltam informações sobre as unidades prisionais e as condições das pessoas presas, dificultando a compreensão sobre a gravidade da situação e deixando as famílias — atualmente sem direito a visitas — à mercê da falta de informação.
Em resposta a essas violações, destacam-se iniciativas de pesquisadores e da sociedade civil como o Infovírus, que traz informações sobre a pandemia no sistema penitenciário e checa a autenticidade dos dados sistematizados pelo Depen e o Índice de Transparência da Covid-19 que avalia a disponibilização de casos da covid-19 em populações privadas de liberdade e ações de enfrentamento nas unidades prisionais pelos estados.
Esse cenário desafiador e permeado por violações de direitos acentua a necessidade de se olhar para o sistema prisional e para a segurança pública a partir das perspectivas de direitos humanos, governo aberto e seus princípios como caminhos possíveis e necessários para se alcançar melhores políticas públicas nessas áreas.
A crise do sistema penitenciário, sua superpopulação, o abismo social em que se coloca, a ausência de políticas públicas efetivas e as violações de direitos demonstram a incapacidade (ou desinteresse) dos governos em lidar com essa questão. Outrossim, há um evidente descompromisso da sociedade para com os problemas carcerários, fruto de processos históricos, sociais e políticos, da ausência de informações e dados, das crenças modernas sobre a punição e do completo distanciamento social em relação à população prisional.
É urgente jogar luz no debate sobre a situação do sistema prisional brasileiro, aproximando-o da população, da gestão pública e dos operadores do direito. Desafios comuns a outras políticas são ainda mais penosos quando se fala em sistema prisional, sendo necessária uma verdadeira reestruturação na maneira de conceber, formular e implementar essas políticas.
A pandemia nos provoca a repensar essa realidade. Diante do problema de saúde pública trazido pela pandemia e das condições desumanas das unidades prisionais, é preciso garantir a publicidade dos dados, espaços de diálogo entre organizações, familiares e os governos, assim como maior prestação de contas e responsabilização sobre as decisões tomadas pelas instâncias governamentais
Para responder à pergunta inicialmente proposta neste texto, reconhece-se que o governo aberto se mostra como caminho necessário para a construção de políticas mais transparentes, responsivas e que dialoguem com os interesses da sociedade, capazes de apresentar novas ideias e soluções para as atuais questões que impregnam e assolam o sistema prisional e a segurança pública no país.