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    Opinião | Jota | De olhos vendados para o mercado ilegal de armas

    8 de novembro de 2022 às 11:44

    Por que todas as Polícias Civis do Brasil deveriam ter uma delegacia especializada em armas e munições?

    Artigo escrito pela gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, publicado pelo JOTA (clique para acessar o texto original)

    Nos últimos quatro anos, apesar de algumas travas e reveses importantes conquistados pela sociedade civil, pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal, uma boiada de acesso a armas de fogo passou pelas nossas porteiras. Foram mais de 1 milhão e 400 mil armas novas registradas por particulares entre janeiro de 2019 e junho de 2022, mais de mil por dia (e crescendo). Soma-se a isso um estoque de milhões de armas com registro já concedido, outras tantas com registro vencido e paradeiro desconhecido e outros milhões em situação ilegal.

    Infelizmente, esses mercados se comunicam. O tráfico se abastece no mercado legal por meio de roubos e furtos (apenas no estado de São Paulo, são 9 armas levadas por dia) ou pelo uso de laranjas – modalidade que se tornou mais atrativa com as regras recentes que permitem compras de armas mais potentes e em maior quantidade. A importância das dinâmicas domésticas de tráfico e de uso ilegal de armas é reforçada por pesquisas do Instituto Sou da Paz e de comissões parlamentares de inquérito indicando que, no geral, ao menos 65% das armas apreendidas são de marcas nacionais, ao menos 50% das armas têm a numeração de série preservada e 40% delas têm registros legais prévios de cidadãos comuns, empresas de segurança privada e de instituições públicas civis – sendo ainda inacessível para esse tipo de rastreamento os registros de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) e de militares.

    Contrariando esse cenário, ao mesmo tempo que o mercado legal foi afrouxado, os recursos para fiscalização e controle da Polícia Federal e do Exército seguiram defasados e insuficientes. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União, em 2016, já descreveu o sistema do Exército como ineficiente e inseguro. É neste mesmo sistema onde estão registrados centenas de milhares de CACs, os maiores beneficiários dos decretos presidenciais. Em 2020, o presidente ordenou, pessoalmente e sem qualquer justificativa técnica, a revogação de uma iniciativa do Exército para aprimorar seu sistema de marcação e rastreamento para fiscalização de armas e munições, ação que só foi revertida um dia antes da votação do STF em setembro de 2021.

    Apesar de um novo sistema para o Exército supostamente ter entrado em vigor em 2022, ainda hoje o estoque de registros de armas está em banco de dados antiquado e insuficiente, do qual não se consegue extrair sequer os registros por tipo de arma ou por cidade, que dirá serem fonte de análises de inteligência e estratégicas de fiscalização que não sejam aleatórias e dependentes de orçamentos reduzidos.

    Além disso, como mencionado acima, o sistema do Exército segue totalmente apartado do sistema da Polícia Federal e inacessível para as polícias estaduais. Isso faz com que policiais militares e civis tenham que analisar documentos de porte e investigar a origem de armas apreendidas de olhos quase vendados ou em compasso de espera via troca de ofícios, enquanto poderia haver um simples login em dispositivo móvel, como hoje existe para verificar a regularidade de veículos ou mesmo checar se uma pessoa é procurada da justiça.

    Apesar de todas essas dificuldades e da relevância da arma de fogo no cenário da violência brasileira, atualmente, só existem duas delegacias estaduais especializadas em combater o tráfico de armas e munições em todo o país: no Rio de Janeiro e Espírito Santo. Essa conta não fecha.

    Na prática, a maioria das 110 mil armas apreendidas todos os anos pelas polícias estaduais não tem sua origem investigada, a não ser que estejam vinculadas a crimes de grande repercussão. No cotidiano, a maioria delas é recolhida, periciada para descrição técnica e remetida a um depósito onde aguarda destinação judicial para ser restituída ou destruída. Há um mar de informações valiosas e pouquíssimos profissionais dedicados a investigá-las.

    A criação dessas delegacias nas polícias civis estaduais foi incluída como recomendação oficial do TCU em novo relatório de março de 2022, parte do processo 042.141/2021-4. Essa proposta, que também consta na nossa Agenda Prioritária para Governos Estaduais, ainda não foi adotada por outros estados. Ela é essencial porque quando um trabalho analítico e de investigação é feito, os resultados não demoram a aparecer. Passa a ser possível identificar registros prévios de fabricação, compra, exportação ou importação e, a partir desse fio, identificar a autoria de crimes, laranjas usados para fornecer armas para o crime organizado, novas rotas e envolvidos no tráfico de armas, detectar a presença de armas institucionais desviadas de arsenais públicos etc.

    Diante desse cenário, o Instituto Sou da Paz vem, em colaboração com diversas secretarias de segurança do país, cooperando para aumentar a especialização da coleta e análise de dados de armas apreendidas. A delegacia especializada existente no Espírito Santo, por exemplo, identificou diversas pessoas que compraram grandes quantidades de armas em situações suspeitas e, no cumprimento de mandados judiciais, identificou que várias dessas armas já tinham paradeiro incerto, possivelmente desviadas para o mercado ilegal. Investigações recentes em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul também identificaram laranjas que forneciam até fuzis para o crime organizado e para uso em roubos a bancos.

    Esse tipo de investigação é importante por dois motivos: i) interrompe o fluxo tráfico de armas ao invés de depender apenas da apreensão no varejo que acontece no cotidiano, quando policiais se deparam com armas no atendimento a ocorrências e abordagens; ii) são mais seguras porque permitem à polícia estar um passo à frente em operações planejadas, com menos chance de confrontos que possam resultar em mortos e feridos.

    É importante notar que as gestões que assumem em janeiro também terão uma grande oportunidade de aumentar sua capacidade investigativa com o início da implantação do SINAB (Sistema Nacional de Análise Balística), uma ferramenta do governo federal em implantação gradual que irá conectar bases de dados estaduais de provas balísticas coletadas em locais de crime. É uma ferramenta poderosa, mas que demanda inteligência e planejamento dos estados na sua implantação para que seja obtido seu máximo potencial.

    Todos estes esforços são investimentos estratégicos para diminuir a disponibilidade do instrumento catalisador de 3 em cada 4 homicídios e presente em roubos, latrocínios, sequestros, ameaças etc. Investigar a origem dessas armas é acender um farol na trilha que leva a todos os crimes violentos e que ilumina as redes de crime organizado e de domínio territorial ilegal.

    Mesmo se a regulamentação de acesso atual for alterada (e esperamos que seja), precisamos lembrar que armas de fogo são bens duráveis. Até hoje ainda se apreende armas fabricadas há 50 anos ou mais, armas que passaram por diversas mãos e seguem em pleno funcionamento. Teremos que lidar com essa herança ingrata pelas próximas décadas. Quanto mais tempo ignorarmos essa realidade, mais difícil será correr atrás do prejuízo. Por enquanto, largamos atrasados e de olhos vendados.

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