Quando começaremos a oferecer justiça às famílias negras em luto?
Artigo escrito pelo gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, publicado no jornal El País. Acesse o artigo no veículo.
Tornou-se um triste lugar-comum tipicamente brasileiro lembrar que somos os líderes mundiais em homicídios, considerando o total de ocorrências. Após uma leve melhora após 2017, o ano de nossa história em que mais somamos vítimas de mortes violentas, os homicídios voltaram a subir em 2020, acrescentando mais dor a todo o sofrimento que a epidemia nos trouxe.
Como no Brasil temos por hábito associar tragédias, além das dezenas de milhares de vítimas anuais de assassinatos, pouco fazemos para oferecer justiça aos mortos e a seus familiares. É notável, por exemplo, que no país com mais homicídios no mundo e com a terceira maior população carcerária do planeta, apenas 11% dos detentos sejam condenados ou estejam sendo acusados de homicídios. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a maioria dos presos, em torno de 40% deles, tem ligação com o tráfico de drogas, em sua grande maioria detidos com uma pequena quantidade de drogas e sem terem praticado atos violentos. Outros 36% estão associados a crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos.Skip Ad
A composição da massa carcerária denota de forma explícita o modelo de segurança pública que vigora no país, apesar dos seus resultados pífios: um modelo de policiamento orientado ao confronto, em detrimento da investigação e da perícia policial; investimento massivo em armas que não deveriam ser utilizadas num país que não esteja em guerra, em veículos e aeronaves de combate orientados a bairros periféricos e pobres e operações policiais orientadas ao confronto e ao flagrante, cujo principal resultado é termos a polícia que mais mata, mas também mais morre no mundo, e pequenas apreensões de armas e drogas. Crimes que dependem de investigações mais complexa s e que muitas vezes não ocorrem nas ruas e por isso não são interrompidos em flagrante, justamente como os homicídios, restam impunes em sua maioria.
Essas reflexões levaram o Instituto Sou da Paz a se debruçar sobre o esclarecimento de homicídios no Brasil há cinco anos e a primeira constatação foi desanimadora: mal havia informações sobre a quantidade de mortes violentas efetivamente esclarecidas pela polícia, com seus acusados denunciados à Justiça pelo Ministério Público. Como melhorar algo cuja dimensão nem se conhece? Como o país com mais homicídios no mundo não apresenta de forma organizada e periódica os dados sobre a impunidade do mais atroz dos crimes? Estas foram as primeiras perguntas que nos chocaram. Desde então passamos a buscar anualmente tanto os Tribunais de Justiça quanto os MPs estaduais para buscar dados que nos permitissem calcular um indicador nacional de esclarecimento de homicídios e pressionar estados a produzirem estes dados e estabelecerem metas para a melhoria de seus índices, a partir de sua própria realidade ― como, aliás, as políticas educacionais são avaliadas há muito tempo.
Há poucas semanas lançamos a 4ª edição da pesquisa “Onde Mora a Impunidade”, onde apresentamos os dados que obtivemos referentes aos homicídios ocorridos em 2018. Embora mais uma vez fracassamos em obter dados válidos para todos os estados brasileiros, comemoramos o aumento significativo de estados que produziram dados desde a primeira edição, em 2017. Naquele ano, apenas seis unidades federativas nos responderam de forma satisfatória. Neste ano, 17 estados apresentaram dados que nos permitiram calcular o índice. Não é possível tratar o tema de forma simplória, considerando a típica diversidade regional brasileira. Se o Paraná e o Rio de Janeiro apresentam índices baixos, de pouco mais de 10% de esclarecimento de homicídios, estados como Santa Catarina e Mato Grosso do Sul superam os 80%.
Conhecer estes números é fundamental para que cada unidade da federação possa planejar políticas de combate aos homicídios e trazer justiça à memória dos mortos e algum alento a seus familiares. Defendemos que estes dados deveriam ser coletados e publicados pelo Governo Federal, para que possam orientar ações coordenadas em todo o território nacional. Há projetos no Congresso Nacional e no Conselho Nacional do Ministério Público para obrigar a produção destes dados pelos estados e a coleta e publicação por órgãos centrais e é urgente que sejam aprovados.
Em nosso país, há tragédias que se repetem de forma crônica. No caso da violência, assassinatos e do encarceramento, o raio cai sempre no mesmo lugar: as comunidades pobres, negras e periféricas brasileiras. Talvez uma cruel explicação para o fato de que o país que mais registra assassinatos no mundo nem sabe ao certo quantos acusados de mortes violentas foram ao menos julgados em seus tribunais seja o racismo estrutural da sociedade brasileira. Não nos preocupamos com nossos mortos de homicídios porque são, em sua quase totalidade, jovens pretos. Dados recentes do Atlas da Violência mostram que 77% das vítimas de homicídio em 2019 eram negras. A chance de um negro ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior do que de alguém não negro. Os mesmos negros pobres aprisionados por pequenas quantidades de drogas em geral são os mesmos mortos pelo crime e pela polícia, assim como muitas vezes são policiais negros que são mortos em operações inúteis e mal planejadas. Além de uma necessidade para se orientar o combate ao homicídio no Brasil, a produção de um indicador nacional de esclarecimento de homicídios é um sinal mínimo de respeito a todos as pessoas negras mortas anualmente no Brasil, assim como a seus familiares, cuja dor resta aprisionada em seus corpos, que não interessam ao Estado.