Com a população sem acesso às interações comunitárias e às instituições que poderiam funcionar como uma rede de proteção, a dificuldade de identificar o abuso tende a aumentar e seu enfrentamento restar ainda mais prejudicado
O artigo foi escrito pelos pesquisadores do Instituto Sou da Paz, Cristina Neme e Rafael Rocha, publicado no El País (acesse o artigo no veículo)
A partir do início da pandemia da covid-19 mudanças no comportamento criminal e na incidência de violências foram observadas em diversos contextos, em parte relacionadas à situação de isolamento social determinado como medida de contenção do vírus. Se o isolamento por um lado contribuiu para a redução de alguns crimes rotineiros, como os roubos, uma vez que a menor circulação das pessoas afeta as oportunidades de praticá-los, por outro pode ter favorecido o cometimento de violências contra grupos da população que ficaram ainda mais vulneráveis durante a quarentena. Como o triste caso do menino Henry veio nos lembrar, as crianças são diariamente vítimas de violência doméstica, praticada por pessoas que lhes são próximas e com quem mantêm vínculos, e assim sofrem repetidamente abusos que ficam silenciados até que uma denúncia venha resgatá-las da situação. Sem a denúncia, os casos de agressão podem se agravar até que resultem na morte da vítima, como mostrou o caso do menino em que as evidências não foram suficientes para afastá-lo do agressor e fazer cessar o padrão de agressões que lhe eram infligidas.
No cenário de violência doméstica outro tipo de agressão que tem como alvo crianças e adolescentes é a de natureza sexual, crime que junto às negligências e violências psicológica e física figura entre as violações mais frequentes registradas pelo Disque 100. Estudo elaborado pelo Instituto Sou da Paz, Unicef e Ministério Público do Estado de São Paulo chamou a atenção para os possíveis impactos do isolamento social na ocorrência e na notificação da violência sexual no Estado de São Paulo, com foco nos casos de estupro de vulnerável. Este ato é praticado contra crianças e adolescentes menores de 14 anos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade e os registros alcançaram uma média de 8.500 casos registrados por ano no Estado de São Paulo entre 2017 e 2020.
Frente à redução dos registros policiais de estupro de vulnerável observada no início da pandemia, emergiu a preocupação com o agravamento da invisibilidade deste drama social: com a população sem acesso às interações comunitárias e às instituições que poderiam funcionar como uma rede de proteção, a dificuldade de identificar o abuso tende a aumentar e seu enfrentamento restar ainda mais prejudicado.
É sabido que esse tipo de crime segue um padrão e ocorre majoritariamente em ambientes domésticos. No primeiro semestre de 2020 os abusos cometidos em casa representaram 84% das ocorrências registradas, valor superior ao verificado no mesmo período dos anos anteriores, em que representavam cerca de 79%. Mensalmente, entre abril e junho de 2020, essa proporção chegou a variar entre 85% e 88%, sinalizando fortemente para a dificuldade de denunciar esses crimes e não a sua efetiva diminuição. Mais de 80% das vítimas são meninas e o pico dos abusos, que as atingem em todas as faixas etárias, ocorre aos 13 anos. Já os meninos são vitimados mais precocemente, com maior frequência por volta dos 4 anos. Sofrem abusos de parentes e pessoas conhecidas, visto que em 79% dos boletins é registrada a autoria conhecida.
Mais recentemente, temos que no primeiro trimestre de 2021 houve aumento de 9,8% nos registros de estupro de vulnerável em relação ao mesmo período em 2020. Nesses três meses, os estupros de vulneráveis representaram 75,5% do total de casos de estupro registrados no estado, observando-se que houve também um crescimento dessa proporção em comparação com o mesmo período em 2020, quando correspondiam a 73,7%. Vale notar que este aumento se dá em cenário de queda de todos os outros indicadores criminais monitorados no Estado de São Paulo, como homicídio e roubos, entre outros.
Qual seria o significado deste aumento, lembrando que no primeiro trimestre de 2020 não havia ainda isolamento social? E considerando ainda que a comparação entre os primeiros trimestres dos anos anteriores (2018 e 2019) indica redução, e não aumento, neste período?
Passado mais de um ano de pandemia, tivemos períodos mais ou menos flexíveis em relação às medidas de isolamento. A diminuição dos registros acompanhada do aumento proporcional da vitimização dentro de casa durante o primeiro período de isolamento social em 2020 apontam para a provável subnotificação dos casos frente à dificuldade de denunciá-los, enquanto o crescimento dos registros no primeiro trimestre de 2021, em oposição à tendência observada neste mesmo período nos três anos anteriores, sugere uma retomada da notificação de violências que ficaram ocultas e represadas e agora chegam ao conhecimento das instituições.
É fundamental dar visibilidade ao problema e fortalecer mecanismos de prevenção e proteção às crianças no cenário em que as vítimas ficaram (e ainda estão) privadas de atividades educacionais assim como do contato com outras pessoas e instituições que possam identificar, denunciar e encaminhar as vítimas para o devido atendimento.