or Raul Montenegro, da Isto É
Mudanças no Estatuto do Desarmamento, que flexibilizam o porte e uso de armas no País, são um retrocesso, e devem aumentar os índices de violência
No estacionamento de um conjunto habitacional em Mogi das Cruzes, Grande São Paulo, um homem inconformado com o fim do casamento de 30 anos discute com a ex-mulher, na noite de terça-feira 16. De repente, uma arma é sacada e cinco tiros são disparados à queima roupa. A professora Terezinha Gentil dos Santos, 53 anos, cai, sem vida. Alcoólatra e violento, o operador de máquinas Davi Ferreira dos Santos, 51, foge para a rua, faz um refém e é morto após tiroteio com policiais. O homicídio é visto por um dos filhos do casal, outro órfão de um crime que poderia ser evitado caso o agressor não carregasse um revólver calibre 38. Cenas como essa fazem parte do cotidiano brasileiro, e podem aumentar depois de uma série de medidas que vão facilitar a circulação de armas de fogo no País. A última delas, de março, permite o porte a atiradores esportivos entre o estande e a residência, colocando nas ruas pelo menos 90 mil armamentos que possuem altas chances de cair nas mãos da bandidagem. As mudanças são ataques ao Estatuto do Desarmamento, que desde 2004 diminuiu a violência ao controlar o fluxo desses objetos – apesar de a venda continuar liberada. “Mais armas em circulação significam mais mortes”, diz Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz. “Os dados comprovam isso.”
Sem discussão
A nova alteração atrapalha a polícia, que não tem como identificar se atiradores esportivos estão no trajeto de casa ao clube. Feita por meio de portaria do Exército, ela não teve discussões públicas. Para piorar, há milhares de pessoas que se escondem atrás das categorias de atiradores, caçadores e colecionadores porque elas conferem benefícios extras. Existem quase meio milhão de indivíduos documentados nessas modalidades especiais, enquanto novos registros comuns para civis somaram menos da metade disso (190 mil) desde 2004. O governo ainda aumentou o tempo entre testes de aptidão, de três para dez anos. O prazo é considerado excessivo, pois apenas aqueles com condições motoras e psicológicas perfeitas poderiam andar armados. Como comparação, cartas de motorista devem ser renovadas a cada cinco anos. A medida também foi implementada sem debate, através de decreto presidencial no fim do ano passado. Flexibilizações defendidas pela chamada bancada da bala no Congresso incluem o fim das restrições para se andar armado nas ruas, o registro vitalício e o porte para categorias específicas. Auditores fiscais e agentes penitenciários ganharam direito, mas até caminhoneiros e taxistas pleitearam o privilégio. “Fica mais difícil o trabalho da polícia”, afirma Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Porque quando você identifica uma pessoa armada hoje, você sabe que provavelmente ela é criminosa.”
Mais vítimas
Os deputados da bancada da bala argumentam que armas não matam pessoas, que pessoas matam pessoas. O que eles não dizem é que discussões banais se transformam em tragédias quando um dos envolvidos está armado. De acordo com estudo realizado pelo Ministério Público, 83% dos homicídios esclarecidos em São Paulo em 2011 e 2012 tiveram motivações fúteis. Nos outros dez estados cobertos, a parcela também foi significativa, cinco deles com mais de 50%. Os números são contundentes, mas contam apenas parte da história, porque a maioria dos assassinatos no Brasil permanece sem solução. O que fica de fora da estatística acima é explicado por outra: três em cada quatro homicídios no País são realizados com armas de fogo, segundo o Atlas da Violência. Portanto, quando o desarmamento passou a vigorar, assassinatos pararam de crescer. Na década anterior à legislação, taxa de mortes por armamentos subia 6,9% ao ano. Caiu para 0,3% ao ano na década posterior, segundo o Mapa da Violência. “Segurança nunca é resultado de uma única questão”, diz Michele dos Ramos, pesquisadora do Instituto Igarapé. “Mas a aprovação do estatuto teve um impacto importante.”
A bancada da bala também diz que, sem armas nas ruas, os bandidos estarão livres para atacar cidadãos indefesos. Na verdade, um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais descobriu que portar arma não aumenta a possibilidade de defesa. Pelo contrário, a chance de morrer é 56% maior em caso de assalto. Um estudo similar feito no Rio de Janeiro mostrou que policiais de folga têm probabilidade de ser assassinados 5887% maior que pessoas de outra profissão. Às vezes o agente de segurança é morto por ser reconhecido como tal, mas há muitos casos de reação. Além de deixar o dono mais inseguro, as armas ainda fortalecem o bandido. Os assaltantes preferem pessoas armadas, como seguranças privados, porque elas são alvos fáceis que carregam o bem mais valioso para a marginalidade. De acordo com o Ministério da Justiça, entre 15 mil e 25 mil armamentos foram furtados, roubados, perdidos ou extraviados por ano entre 2009 e 2011. Uma pesquisa do Sou da Paz revelou que 38% das armas apreendidas pela polícia em São Paulo foram vendidas legalmente e desviadas para o crime. “O cidadão armado continua à mercê”, diz Lima. “Falar o contrário é apenas retórica vazia que não está baseada em fatos.”
Em outros países do mundo, o desarmamento também controlou a violência. Nações ricas como a Austrália e pobres como a África do Sul viram os índices caírem bastante depois de tomarem medidas. Nos Estados Unidos, nação mais violenta entre as desenvolvidas, onde a venda é liberada, locais com mais restrições possuem menos crimes (veja no quadro). No Brasil, as concessões feitas pelo governo Michel Temer em busca de apoio parlamentar abriram as portas para a bancada da bala avançar projetos contra o estatuto como moeda de troca. E um dos candidatos presidenciais em maior evidência é Jair Bolsonaro, defensor convicto das armas. “Esse debate impede que a gente avance em mudanças legislativas importantes”, afirma Ramos. “Enquanto discutimos o Estatuto do Desarmamento, temos uma série de outras políticas necessárias deixadas de lado.”