Série especial do GLOBO sobre o tema mostra os principais entraves que terão de ser enfrentados pelo novo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, na contenção da violência
Reportagem publicada pelo O Globo (clique para acessar o texto original)
Anunciado esta semana como novo ministro da Justiça pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Ricardo Lewandowski terá a missão de gerir a pasta da segurança pública, uma das áreas mais sensíveis ao governo no primeiro ano de gestão. O país ostenta a primeira posição do ranking mundial de mortes violentas, população carcerária recorde e multiplicação no número de armas na rua — e seguidos governos foram incapazes de encontrar soluções para posições nada honrosas.
O GLOBO publica a partir de hoje um diagnóstico dos principais problemas da área e mostra como o governo federal pode liderar iniciativas para melhorar a atuação dos estados. Ao longo da série, especialistas vão debater temas como causas e consequências das altas taxas de letalidade das polícias brasileiras e as soluções internacionais que podem servir de inspiração para o Brasil. Uma opinião é unânime entre os entrevistados: o Brasil ainda engatinha no uso de evidências científicas no enfrentamento à violência.
— Aqui, o debate sobre segurança pública é capturado pelos policiais. Fazendo um paralelo, o policial está para a segurança como o médico está para a saúde. Eles são centrais no processo, atendem a população no dia a dia, mas decisões da área da saúde na pandemia foram tomadas com base em diagnósticos de cientistas. Na segurança, deveria acontecer o mesmo — pontua Joana Monteiro, coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) de dezembro passado, o Brasil registrou 45.562 assassinatos em 2021 e, mesmo com 2,7% da população global, o país concentrou mais de 10% das mortes violentas de todo o mundo. Os presídios brasileiros, muitos superlotados, concentram hoje 649 mil detentos, um ambiente profícuo para o fortalecimento e a proliferação de facções do narcotráfico.
Crises na Bahia e no Rio
A quantidade de armas em circulação também chegou a seu ápice após mais do que dobrar nos últimos quatro anos: quase 3 milhões de pistolas, revólveres, carabinas e fuzis fazem parte de acervos privados — e as autoridades não fazem ideia de quantas já estão nas mãos do crime organizado. Depois da pandemia, crimes patrimoniais, sexuais e contra mulheres e crianças chegaram a níveis jamais vistos.
A segurança pública foi responsável por uma das maiores crises do primeiro ano do governo Lula: após a explosão de violência na Bahia e a guerra entre milicianos e traficantes no Rio, o presidente decidiu assinar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para atuar em portos e aeroportos — o que não o livrou de críticas ao longo de 2023.
— Até agora, a gestão foi ativa na dimensão operacional, mas falta uma marca na segurança pública. O Ministério da Justiça fez operações através da Polícia Federal, mas deixou de incidir sobre a agenda de coordenação federativa para fazer o sistema avançar. Na prática, é como se o governo tivesse virado um grande batalhão da PM — afirmou Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Veja abaixo tópicos cruciais para entender os gargalos da segurança pública e buscar avanços. A série continua nesta segunda-feira, com um diagnóstico sobre as polícias brasileiras.
POLÍTICA DE ARMAS
Em novembro de 2022, Mychell Egídio Oliveira foi à Delegacia de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, para comunicar à polícia que seu apartamento havia sido arrombado e suas armas, levadas pelos criminosos. Dono de um pequeno mercado na cidade, Oliveira se registrou como Caçador, Atirador Desportivo e Colecionador (CAC) junto ao Exército e aproveitou a política armamentista em vigor para adquirir um arsenal: segundo o comerciante, 16 armas, entre fuzis, carabinas, pistolas e revólveres — avaliadas em cerca de R$ 200 mil —, haviam sido furtadas.
Alguns detalhes, entretanto, chamaram a atenção dos investigadores. O furto aconteceu em julho, e Oliveira só procurou a polícia quatro meses depois, quando recebeu uma notificação do Exército avisando que seu arsenal seria fiscalizado. A renda do comerciante, de R$ 10 mil mensais, também não era compatível com o armamento que ele possuía. Após um ano de investigação, a polícia descobriu que o furto foi forjado pelo comerciante: as armas, na verdade, tiveram seus números de série raspados e foram revendidas. Oliveira foi preso em dezembro passado e é investigado sob suspeita de ter comercializado as armas com facções criminosas. Até hoje, não se sabe onde o armamento foi parar.
O caso ilustra o tamanho do problema herdado pelo governo Lula. A política de flexibilização sem precedentes adotada por Jair Bolsonaro teve como consequência um aumento de mais de 100% no arsenal em circulação no país: dados da Polícia Federal e do Exército mostram que, de 2018 a 2022, a quantidade de armas em acervos particulares (ou seja, em nomes de CACs, militares, policiais e civis com autorização para posse ou porte) no país saltou de 1,3 milhão para quase 3 milhões. E, como mostra o arsenal desaparecido do comerciante de Caucaia, parte desse armamento já está nas mãos de criminosos.
Logo em seu primeiro dia de mandato, Lula congelou o registro de novas armas. Sete meses depois, publicou um decreto que restabeleceu diversas restrições, como a proibição da venda de fuzis e pistolas .40 e 9mm aos CACs. As medidas, no entanto, não deram destino às armas que foram despejadas no mercado nos últimos anos. Especialistas defendem a criação de um programa consistente de recompra de armas, que force os proprietários a entregá-las e destine o armamento para forças de segurança.
— É preciso dar uma porta de saída para evitar que essa arma seja desviada para o mercado ilegal ou fique em situação irregular. Se isso não for feito, elas ficarão por décadas na sociedade, e vamos sentir os estragos ao longo do tempo — diz o policial federal Roberto Uchôa, que é conselheiro do FBSP.
Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas, o governo também deveria proibir o uso de armas de calibre restrito por CACs em estandes de tiro.
— O governo precisa induzir quem comprou fuzil nos últimos anos a entregar esse armamento, tirar armas desse tipo, com alto poder de destruição, de circulação. Por isso, o uso de quem já tem a arma deve ser desestimulado — afirma Langeani.
A intensificação da fiscalização a CACs e clubes de tiro também é considerada medida fundamental para rastrear o arsenal em circulação no país. O governo já determinou a “migração progressiva” da fiscalização a CACs do Exército para a PF até 2025. Especialistas aprovam a mudança, mas alertam que a fiscalização não pode ser interrompida durante o período de transição e que a PF precisa ter seu efetivo reforçado para conseguir vistoriar arsenais em todo o país. Outro desafio do governo é aperfeiçoar os bancos de dados federais sobre armas e munição e integrá-los aos sistemas das polícias estaduais.
— Os bancos de dados sobre armas e munição do Exército (Sigma e Sicovem, respectivamente) não são acessíveis pelas polícias. Isso significa que um PM que aborda um CAC armado na rua não tem como verificar, em tempo real, se sua arma é legal ou não. Nem dentro de uma delegacia é possível fazer essa verificação. No caso dos cartuchos, as polícias deveriam ter acesso ao sistema para detectar suspeitas de desvios, lojas que vendem munição em quantidades suspeitas — explica Langeani.
CRIME ORGANIZADO
Em 2020, a ONG chilena Latinobarômetro perguntou a 20 mil habitantes de 18 países da América Latina se eles conviviam com grupos criminosos armados, facções do tráfico ou gangues no bairro onde moravam. O resultado escancara o tamanho do desafio do Brasil no enfrentamento ao crime organizado: 70,8% dos entrevistados brasileiros responderam “sim” para a pergunta — com folga, a maior taxa entre todos os países. O segundo lugar do ranking ficou com El Salvador, onde as “maras” controlam parte considerável do território, com 41%. Só 36% dos colombianos e 34% dos mexicanos, que convivem com conflitos entre cartéis do tráfico e grupos paramilitares, afirmaram sentir a presença do crime em seu bairro. Países produtores de maconha e cocaína, como Paraguai e Bolívia, registraram percentuais ainda mais baixos.
O problema não é atual, mas mudou de escala nas últimas décadas. As duas maiores facções do tráfico do país se nacionalizaram, disputam territórios e rotas à bala em vários estados e se tornaram atores do tráfico internacional, controlando portos e expandindo seus mercados para países africanos e europeus. No Rio de Janeiro, as milícias se expandiram da capital para vários municípios da Região Metropolitana e diversificaram seu modelo de negócios, incorporando o ramo imobiliário, a construção civil, a grilagem de terras e até a extração mineral. Já na Bahia, um emaranhado de rixas, alianças e rupturas de grupos criminosos levou o estado ao topo do ranking de mortes violentas do país.
Segundo especialistas, o avanço do crime não foi acompanhado de políticas públicas eficientes por parte dos últimos governos. O sociólogo e professor da UFF Daniel Hirata afirma que a opção do país por políticas repressivas de enfrentamento à criminalidade organizada não tem amparo em evidências científicas.
— Países que optaram pelo enfrentamento militarizado ao crime, baseado em ações de força, acabaram por fortalecê-lo. No México, por exemplo, o uso do Exército em operações para combater o narcotráfico culminou na criação dos Zetas, cartel de drogas fundado por ex-militares de elite — explica Hirata.
A alternativa mais adequada para combater grupos armados que controlam territórios e mercados ilegais, de acordo com o especialista, é o investimento massivo em investigação qualificada, amparada na análise de dados e no uso de métodos importados das Ciências Sociais.
— Investigações que trabalham com análise robusta de dados produzem melhores resultados para a sociedade porque conseguem identificar alvos prioritários e prever o impacto das ações policiais para o crime e para a população. No Brasil, ainda estamos longe de implantar. Há uma resistência das polícias em se aproximar da academia. O ‘faro’ policial, ou seja, o conhecimento empírico, ainda guia as investigações conduzidas aqui — afirma o sociólogo, que vê um papel fundamental do governo federal na implantação desse modelo de investigação, a partir de investimentos na formação policial, projetos que estimulem o contato entre universidades e polícias e a valorização interna de agentes que buscam se qualificar.
Para a economista Joana Monteiro, uma das prioridades no enfrentamento ao crime organizado, sobretudo nas grandes cidades brasileiras, deveria ser a recuperação do controle de territórios pelo Estado. A especialista propõe que a retomada do monopólio do uso da força está relacionada a três pilares: o esclarecimento de homicídios ligados ao grupo criminoso, que são usados como ferramenta de coerção, e punição dos responsáveis; a investigação sistemática de práticas de corrupção de agentes públicos, que são um empecilho à ação estatal no território; e, por fim, o ataque aos meios de acesso a armas da quadrilha.
— As UPPs foram a primeira e única vez que o Rio decidiu lidar com a questão do domínio de territórios pelo crime. Por uma série de motivos o projeto não se sustentou, mas não podemos abandonar essa ideia. Não vamos conseguir acabar com o tráfico de drogas, mas precisamos retomar para o Estado o monopólio do uso da força nos territórios, isso deveria ser prioridade dos governos — explica Monteiro.
Especialistas também apontam que, diante de organizações criminosas transnacionais, cabe ao governo federal coordenar uma política nacional de combate ao crime organizado, com um desenho institucional que facilite intercâmbios entre órgãos federais, estaduais e do sistema de justiça. A integração das polícias civis e militares com a PF, órgãos responsáveis pelo controle de fronteiras e patrulhamento de rodovias — como Exército, PRF e Receita Federal — e Ministérios Públicos é considerada fundamental para frear a entrada de armas ilegais no país e atacar o braço financeiro dos grupos.
— No caso do tráfico de armas, por exemplo, nosso problema não pode mais ser resolvido isoladamente pelos estados. As organizações criminosas que atuam no Brasil não são mais estaduais, sequer são nacionais, mas de escala global. Não é questão de o governo federal apoiar o estado A ou B. É preciso que os órgãos trabalhem em conjunto e em colaboração com as polícias de outros países para termos resultado — conclui o policial federal Roberto Uchôa.
IMPUNIDADE
Uma onda de crimes bárbaros assustou Paracatu, cidade de 90 mil habitantes no Noroeste mineiro, no segundo semestre do ano passado. Em 14 de agosto, dois homens vestidos com bonés e armados com pistolas invadiram uma construtora e executaram a tiros dois funcionários da empresa, Sérgio Antônio de Melo e seu filho, Muriel de Oliveira Melo. Três semanas depois, em 5 de setembro, três atiradores dispararam mais de 60 vezes contra um homem, que conseguiu sobreviver. Já em 20 de setembro, as vítimas foram três irmãos, atacados por homens armados que passaram numa moto enquanto conversavam na porta de casa: dois deles morreram, a irmã mais nova, de 18 anos, levou um tiro de raspão.
Uma aura de mistério envolvia os ataques, até que o surgimento de uma nova prova revelou que os crimes tinham ligação entre si e foram cometidos pelo mesmo grupo. Em dezembro, a Superintendência de Polícia Técnico-Científica de Goiás revelou que as armas utilizadas nos três casos haviam sido apreendidas num ataque a policiais militares a cerca de 200 km de Paracatu, na cidade de Corumbaíba, em Goiás. Na ocasião, três homens foram mortos após furarem um bloqueio feito pela PM e atirarem contra os agentes. Os criminosos eram integrantes de uma facção criminosa que domina a cidade goiana de Catalão, e os crimes têm relação com disputas por pontos de venda de drogas. A descoberta foi feita graças ao Banco Nacional de Perfis Balísticos, sistema criado em 2021 que estabelece relações entre provas periciais coletadas por todos os estados do país.
A investigação dos homicídios de Paracatu, no entanto, é exceção: a cada três assassinatos registrados no Brasil, somente um é elucidado. Dos 40 mil crimes do tipo que aconteceram de 2021, somente 35% foram solucionados até o final de 2023, como mostra a pesquisa “Onde Mora a Impunidade?”, feita pelo Instituto Sou da Paz. O país está abaixo das médias de elucidação global (63%) e das Américas (43%), continente com o pior índice de esclarecimento de homicídios do mundo.
Tão grave quanto as estatísticas, é a inexistência de um indicador oficial da taxa. Foi o vácuo do governo federal na produção e gestão de dados sobre elucidação de mortes violentas que levou o Sou da Paz a começar a pedir essas informações para cada estado e compilá-las. Estudos feitos pela ONG há sete anos apontam que o país não avançou: no período, as taxas de elucidação flutuaram entre 32% e 37%. Especialistas são unânimes em apontar que o Brasil precisa de uma política de priorização de investigação de homicídios — que deveria começar a partir de um diagnóstico oficial e público do problema.
— Medir ajuda a jogar luz no problema, a entender quais estados têm boas práticas e quais precisam avançar e a criar metodologias para melhorar os números. É importante que o governo federal assuma essa agenda e formule um indicador nacional, que deveria ser divulgado periodicamente. Até mesmo para vincular o repasse de recursos ao fornecimento desses dados ou à melhoria nas taxas — ressalta Carolina Ricardo, do Sou da Paz.
A economista Joana Monteiro defende que uma política de priorização de elucidação de homicídios é o caminho mais eficaz para o enfrentamento à criminalidade organizada no país.
— Estou cada vez mais convencida de que priorizar a resolução de homicídios é conter a expansão da criminalidade organizada. Aumento de homicídios em certas áreas é indicativo muito forte de atuação de milícias e facções. A polícia e parte da sociedade não dá valor porque é “bandido matando bandido”. Mas é a partir das investigações dessas mortes que é possível avançar para chegar à estrutura e aos negócios das organizações. E esse processo tem que ser liderado pelo governo federal, a partir do discurso e do repasse de recursos — afirma Monteiro.
Um exemplo que mostra o quanto a impunidade beneficia o crime é o de Matheus da Silva Rezende, o Faustão, ex-número 2 da hierarquia da maior milícia do Rio morto em outubro passado. Ele era apontado pela polícia como responsável por mais de 20 assassinatos, afinal era o principal homem da quadrilha nas ações de ataque a territórios dominados por rivais. No entanto, quando foi morto, só tinha um mandado de prisão por homicídio. Os inquéritos dos demais assassinatos cometidos pela milícia com sua participação permanecem sem solução.
Uma portaria recente assinada pelo então ministro Flávio Dino deu um passo na direção da priorização da elucidação de homicídios. Em agosto passado, Dino vinculou 80% dos repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública obrigatoriamente a projetos relacionados à redução de mortes violentas, que contemplam, por exemplo, iniciativas de fortalecimento da perícia criminal e investimentos para delegacias especializadas na investigação de homicídios.
Outros avanços na área foram a criação e consolidação de bancos nacionais de evidências, como o de perfis balísticos — que chegou a todos os estados do país em 2023, já tem 30 mil cartuchos apreendidos cadastrados e foi usado, com sucesso, no caso de Paracatu — e o de perfis genéticos, que alcançou a marca de mais de 200 mil DNAs cadastrados. Este ano, um homem preso por roubo em São Paulo teve o material genético coletado e, a partir do banco de dados, a PF concluiu que ele também havia participado do mega-assalto à transportadora de valores Prosegur, em Cidade do Leste, no Paraguai, em 2017. Hoje, ele responde na Justiça pelo crime.
POLÍTICA PENAL
Até 2015, Clemilson dos Santos Farias era um ilustre desconhecido na cena do crime do Amazonas. Quando foi preso em flagrante, em maio daquele ano, junto com outros sete homens que portavam cinco pistolas, um revólver e uma submetralhadora num posto de gasolina de Manaus, sua ficha na polícia se resumia a um furto na empresa de telefonia onde trabalhava, em maio de 2007. No sistema prisional, no entanto, Farias ascendeu na hierarquia do crime: em oito anos, após rodar por cadeias do Amazonas e estabelecer conexões criminosos de outros estados em presídios federais, ele se tornou o número dois do Comando Vermelho no Amazonas. Atualmente, Farias, mais conhecido como Tio Patinhas, controla a rota do Solimões e transporta grandes remessas de cocaína dos países andinos para a África e a Europa.
A trajetória de Tio Patinhas retrata como o sistema penitenciário brasileiro se transformou numa escola do crime organizado. Nas últimas duas décadas, a quantidade de presos no Brasil quadruplicou e, em 2022, o país alcançou a maior população carcerária de sua história, com 649 mil detentos nas cadeias. Se todas essas pessoas vivessem em uma cidade, ela seria a 18ª mais populosa do país. Quase 70% dos presos são negros e a maioria é bastante jovem: 43% têm até 29 anos. Casos de tortura e maus-tratos, reportados por órgãos de direitos humanos em presídios de todos estados, não favorecem a recuperação dos internos e só tornam o cenário mais propício para o fortalecimento das facções.
— A visão de que o Brasil é um país que pune pouco e precisa de penas mais severas é errada. Na verdade, prendemos muito e mal. Um quarto dos presos brasileiros sequer foi julgado. A maioria deles não tinha vinculação com o crime organizado quando entrou no sistema. Lá dentro, eles acabam construindo um vínculo de dependência com as facções, porque as prisões brasileiras não oferecem condições mínimas de sobrevivência. Quem garante a sobrevivência dos presos são as facções — afirma o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da UFF.
Para reverter esse quadro, especialistas são unânimes em apontar que o Brasil precisa qualificar sua política penal, para que as prisões sejam reservadas para criminosos de alta periculosidade, como chefes de organizações criminosas — que, hoje, são justamente os presos que conseguem se livrar da cadeia, beneficiados por decisões judiciais — e autores de crimes graves, como homicídios.
— Prendemos muita gente em flagrante, com pouca investigação. Geralmente são operadores da base do crime. É como se usássemos remédio tarja preta para tratar dor de cabeça, em vez de aspirina. Essas pessoas podem receber penas alternativas à prisão. A prioridade do governo federal precisa ser a punição do cabeça do crime organizado, e não a prisão do aviãozinho em flagrante — afirma Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz.
O crime que mais leva presos à cadeia no Brasil é o tráfico de drogas. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), quase um quarto dos detentos do país é acusado de comercializar drogas ou de se associar a grupos que exploram o negócio. Para especialistas, o Brasil deveria começar a discutir mudanças em sua legislação sobre drogas.
— Acreditava-se, há décadas, que a proibição das drogas reduziria o consumo e melhoraria a saúde das pessoas. Não foi isso que aconteceu. Hoje, drogas são consumidas num volume muito maior. Mesmo assim, a gente insiste em manter uma política de proibição que tem um custo muito alto: a polícia e o sistema de Justiça gastam tempo, pessoal, dinheiro e energia com crimes que não representam grave ameaça à pessoa — opina a socióloga Julita Lemgruber, ex-diretora do Sistema Penitenciário do Rio. Em 2021, ela coordenou um estudo que estimou em R$ 1 bilhão o custo anual para manter a proibição das drogas no Estado do Rio.
Já Gabriel Feltran, pesquisador em sociologia do crime no Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS), defende que o Brasil deveria regulamentar priorizar a regulamentação de mercados ilegais, a começar pelo das drogas, que movimenta bilhões de reais. A ideia é criar regras de transporte e comercialização para produtos vendidos ilegalmente — para, assim, tirá-los das mãos do crime.
— Nós precisamos de leis que tirem essas economias do crime e passem para empresários, que pagam impostos para o Estado. No Brasil, já colocamos essa ideia em prática de uma maneira muito bem sucedida com a Lei do Desmanche, em São Paulo, que tirou do crime o mercado de autopeças usadas. Isso deveria ser replicado com outras economias ilegais — conta Feltran.
Em São Paulo, roubos e furtos de carros historicamente alimentavam um mercado ilegal de autopeças, que eram desmontadas em estabelecimentos clandestinos e revendidas. Aprovada em 2014 pelo então governador Geraldo Alckmin, a lei passou a obrigar que ferros-velhos fossem registrados junto ao governo e estabeleceu regras para o desmonte e a venda de peças soltas, que passaram a ser rastreadas. O aumento da fiscalização fez o número de roubos e furtos de veículos cair 49% no estado nos anos seguintes.