Ao menos cinco delas, compradas legalmente com autorização do Exército, acabaram apreendidas quando eram empregadas em crimes por grupos paramilitares
Reportagem publicada pelo O Globo (clique para acessar texto original)
A pistola modelo TS9, calibre 9mm e número de série ADD218046 foi produzida em abril de 2022 em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, onde fica a sede da sua fabricante, a Taurus. Três meses depois, Anderson Guilherme de Jesus Souza, atirador desportivo novato, certificado há poucos meses pelo Exército, a comprou numa loja em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Em setembro, ele regularizou a situação da arma: junto à 1ª Região Militar, emitiu o certificado de registro (CR) e a guia de tráfego da pistola. A partir daí, Souza podia usá-la em estandes e competições de tiro.
Mas não foi o que aconteceu: na madrugada de 14 de fevereiro de 2023, a TS9 foi apreendida e seu dono, preso em flagrante, numa ação da Polícia Militar contra milicianos em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio. Na ocasião, Souza integrava um grupo de dez paramilitares — armados de pistolas e fuzis — detido após fazer três mulheres reféns dentro de uma casa. O objetivo de Souza e seus comparsas, segundo as vítimas, era expulsá-las e tomar o imóvel. O atirador era um dos motoristas do bando e sua arma foi encontrada, junto com uma balaclava, dentro do carro com placa adulterada que dirigia. Em apenas dez meses, a pistola saiu da fábrica, foi comprada de forma legal e passou a ser usada em ações da milícia.
Armas apreendidas
O caso não é único: o GLOBO reconstituiu a trajetória de mais quatro armas compradas legalmente, com autorização do Exército, que acabaram apreendidas quando eram empregadas em crimes por grupos paramilitares. Todas têm um ponto em comum: assim como aconteceu com Souza e sua pistola, foram adquiridas por integrantes da categoria dos Caçadores, Atiradores e Colecionadores, os CACs, que foram acusados de integrar milícias. Na maioria das vezes, o armamento foi apreendido menos de um ano depois de ser fabricado.
Com o bando de Souza, a polícia recolheu sete pistolas e dois fuzis. Além da arma do motorista, outras duas foram compradas nos meses anteriores ao crime por integrantes da quadrilha que tinham certificados de CAC. O atirador Oséas Rocha de Souza Junior foi capturado numa área de mata próxima ao imóvel das vítimas com uma pistola Taurus, calibre .45, número de série ADB947347, na cintura. Fabricada em fevereiro de 2022, a arma foi comprada por ele por R$ 6,3 mil em 18 de maio na mesma loja em que Souza encomendou a sua: a Mil Armas, em Nova Iguaçu. No dia 15 do mês passado, a empresa foi alvo de uma operação da Polícia Federal em que cerca de mil armas foram apreendidas.
Além da pistola, Oséas também registrou, seis meses antes do crime, um fuzil Taurus calibre 5,56 em seu nome junto ao Exército. A arma longa, no entanto, não estava com ele no dia da invasão.
Naquela madrugada, outro CAC foi capturado após perseguição na mata: Carlos Adriano Pereira Evaristo, que teve seu certificado de registro emitido pela 1ª Região Militar em 27 de maio de 2022. Quando foi preso, Evaristo portava uma pistola Taurus calibre .40, número de série ADD231172, fabricada em abril de 2022 e registrada em seu nome seis meses antes do crime. Em depoimento, as vítimas do bando contaram que, ao invadir a casa, homens armados anunciaram: “Agora esse terreno é nosso, pega suas coisas, vocês vão sair daqui hoje”.
As três mulheres, depois de agredidas, foram obrigadas a recolher seus pertences e deixá-los na varanda. Acionada por denúncia anônima, a PM chegou ao local. Até hoje, os dez integrantes do bando — incluindo um oficial da PM, o tenente Felippe Pinto Ferreira Gedeão — seguem presos pelos crimes de constituição de milícia privada, porte ilegal de arma e esbulho possessório.
Mudanças na lei
No governo de Jair Bolsonaro (PL), o arsenal nas mãos de CACs cresceu 187% em relação a 2018 e chegou a 1 milhão de armas em julho de 2022. Desde o início deste ano, um decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) suspendeu as emissões de novos certificados de registro para CACs. O texto também determina que as armas de integrantes da categoria passem por recadastramento pela Polícia Federal. Um dos objetivos da medida é descobrir quantas armas adquiridas por atiradores, caçadores e colecionadores foram desviadas para o crime organizado.
Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas, mudanças feitas pelo governo Bolsonaro facilitaram desvios de armamento.
— Antes, vários calibres de pistola, como 9mm e .40, e fuzis eram de uso exclusivo das polícias. Com as mudanças, qualquer CAC passou a ter acesso a essas armas, muito mais potentes do que as que eram liberadas anteriormente. Além disso, Bolsonaro aumentou o limite de armas que um atirador esportivo pode ter. A cooptação de CACs pelo crime se tornou uma alternativa rentável, porque permite a aquisição de armas potentes, em grandes quantidades, sem os riscos do mercado ilegal — explica Langeani.
‘Acesso restrito’
Outra arma adquirida de forma legal e apreendida numa operação contra a milícia foi a pistola Taurus 9mm, número de série ACN716522. Em 11 de outubro do ano passado — apenas dez meses depois de fabricada — , policiais civis prenderam três homens armados e com fichas de pagamento de “gatonet” no Morro do Pau Branco, em São João de Meriti. Um deles era o CAC Jair Fernandes, dono da pistola. Em depoimento, ele negou fazer parte da milícia e disse que estava a caminho de um estande de tiro na ocasião. Ele segue preso e é réu pelo crime de porte ilegal da arma.
Questionado se os certificados de registro dos cinco CACs presos em ações da milícia ainda estão ativos, o Exército alegou, por meio de nota, que “informações pessoais e técnicas daqueles que exercem atividades com Produtos Controlados pelo Exército (PCE) são consideradas de acesso restrito”.