Por Renata Mariz (leia matéria original publicada pelo jornal O Globo)
Governo federal ampliou tempo para revalidação de documentos, que inclui teste de aptidão psicológica, de cinco para dez anos, e média anual de análises de autorizações caiu de 135mil para 68 mil nos últimos anos
Uma das primeiras medidas tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro para facilitar o acesso a armas no país, a extensão do prazo para renovação de licenças é apontada por especialistas como uma das principais “brechas” criadas pelo governo na fiscalização. Se antes alguém que possuía um registro precisava atualizá-lo a cada cinco anos, agora só precisa fazer isso a cada dez, o dobro do tempo. Os resultados são menor controle de quem tem ou deixou de ter o artefato e também se o portador da licença emitida continua apto do ponto de vista psicológico. Outra grande preocupação é que a rastreabilidade das armas — a capacidade de saber onde cada uma delas está e com quem — cai drasticamente, e algumas podem passar a servir ao crime.
Os números levantados pelo GLOBO junto à Polícia Federal mostram o tamanho do impacto das mudanças nas regras. De 2019 para cá, a média anual de revalidações de licenças diminuiu de 135 mil para 68 mil. Isso significa que aproximadamente 70 mil armas deixaram de passar, a cada ano, pelo controle feito no momento da renovação de registro. É durante essa revalidação que o dono do armamento atualiza dados pessoais e apresenta à Polícia Federal novos atestados de capacidade técnica de manuseio e psicológica exigida para ter acesso a uma arma de fogo.
Para Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, organização não-governamental que faz estudos sobre segurança pública, a queda na renovação de registros de arma de fogo mostra, em termos práticos, o desmonte promovido durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro na estrutura de controle desses produtos no país.
— Esse governo está reduzindo a rastreabilidade das armas de fogo ao estender tanto a validade do registro, que é quando o cidadão presta contas, quando ele informa se ainda está com aquela arma, onde está morando, qual a ocupação dele — aponta a especialista.
Do ponto de vista legal, os proprietários de armas estão amparados. Porém, uma resolução recente do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabeleceu que o laudo de avaliação psicológica para o interessado em ter arma e também para renovar a licença tem validade de, no máximo, dois anos. A medida do conselho foi uma resposta à ampliação do prazo do registro de cinco para dez anos.
Coordenadora da comissão consultiva em avaliação psicológica do CFP, Katya Luciane de Oliveira diz que mesmo o tempo estabelecido na resolução, de dois anos, pode ser longo “para a psicologia”. No entanto, é um prazo razoável diante do que decretou o governo.
— Quando a gente faz uma avaliação, é difícil assegurar que a pessoa vai continuar exibindo aquele comportamento ou um maior controle inibitório sobre suas reações durante um período de dois anos. Muito menos em dez anos. É muito tempo — explica Oliveira.
Avaliações psicológicas
De acordo com ela, a resolução que estabeleceu a validade da avaliação psicológica em dois anos traz maior respaldo para os profissionais, mas também “tem o papel de proteger a sociedade”. A conselheira prevê que, em algum momento, haverá uma discussão jurídica em torno da necessidade de os possuidores de armas seguirem o que diz a resolução. Muitos podem buscar amparo legal no decreto presidencial para não cumprirem a norma determinada pelos profissionais da área, diz ela:
— Teremos um impasse entre uma deliberação do governo federal e outra deliberação que norteia a prática profissional do psicólogo, que é assegurada por lei. Em assunto de psicologia, quem tem que fazer essa gestão é o conselho de classe.
Os dados oficiais apontam que 136.823 armas tiveram o registro renovado em 2016, 142.588 em 2017, e 126.731 em 2018. A partir de 2019, quando houve a extensão da validade da licença, a queda detectada é impactante. Naquele ano, 67.261 armas foram revalidadas; em 2020, foram 75.268; e, em 2021, 63.101.
Os dados dizem respeito ao armamento nas mãos de civis, incluindo o cidadão comum, cujos registros ficam sob a responsabilidade da Polícia Federal. Não entram nas estatísticas dados de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), gerenciados pelo Exército.
A queda nas revalidações a cada ano não pode ser considerada indício de uma eventual diminuição de armas de fogo em circulação. Ao contrário, o número de armas com registro ativo na Polícia Federal nunca foi tão grande: 1,5 milhão, das quais 704,7 mil (46%) são de cidadãos comuns. O restante está em empresas de segurança privada, nas polícias não militares, com servidores públicos que têm porte funcional, entre outros civis.
Para Daniel Cerqueira, pesquisador da área de segurança pública, o conjunto de flexibilizações que Bolsonaro vem fazendo está promovendo um armamentismo sem mecanismos de controle.
— É irresponsável estabelecer dez anos como prazo de validade. Um tempo muito longo em que o Estado não saberá o que está acontecendo com esse cidadão, com essa arma — diz ele.
Coronel reformado da Polícia Militar e consultor em segurança, o coronel José Vicente da Silva considera que o prazo anterior, de cinco anos, era adequado. Ele diz que os dados da violência no Brasil por arma de fogo não permitem uma liberalidade tão grande, como o prazo de validade de dez anos e a ausência de outras barreiras que impeçam pessoas sem perfil de terem arma.
— Em Nova York, é muito difícil um cidadão conseguir um registro de arma de fogo. Portar, jamais. Se tiver uma multa de trânsito, já terá dificuldade de acesso. No Brasil, o único filtro que praticamente temos hoje é o preço da arma. Um .38 vai custar de R$ 5 mil a R$ 7 mil. Isso é que dá uma filtrada — alerta Silva.