Carolina Ricardo afirma que ainda há trabalho a fazer para reverter flexibilizações de Bolsonaro e classifica PEC proposta por Ministério da Justiça como ‘cortina de fumaça’
Reportagem publicada pela O Globo (clique para acessar texto original)
Socióloga e diretora do instituto Sou da Paz, que completa 25 anos de existência, Carolina Ricardo afirma, em entrevista ao GLOBO, que o “controle de armas saiu da agenda do governo federal”. A especialista avalia que ainda há trabalho a fazer para reverter flexibilizações do governo de Jair Bolsonaro e classifica a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sugerida pelo Ministério da Justiça como uma “cortina de fumaça”.
O Estatuto do Desarmamento, embora ainda em vigor, foi esvaziado. O governo Lula já fez tudo o que deveria para recuperar esse dispositivo?f
Quando o Bolsonaro assume a Presidência, aprova mais de 40 normas infralegais que liberam armas de uso restrito, como fuzil semiautomático e pistola 9mm, e até 60 armas por CAC. Todas essas mudanças foram um desmonte do estatuto. Quando o governo Lula assume, publica dois decretos que reverteram tudo isso. Foi importante para frear a entrada de novas armas em circulação, mas nada foi feito com o estoque. Depois disso, a minha sensação é, sobretudo a partir de 2023, de que o controle de armas saiu da agenda de prioridades do governo federal.
O que ainda deve ser feito?
Teríamos que ter um desenho de um programa de recompra dessas armas longas para que elas possam ser transferidas para as polícias. Não vejo nenhum indício disso. Além disso, alguns processos estão atrasados.
Como o quê?
O governo deveria estar com tudo organizado para transferir a estrutura de fiscalização dos CACs do Exército, que não dá conta desse serviço, para a Polícia Federal. Isso foi previsto num decreto em julho do ano passado e deveria passar a valer a partir de 1º de janeiro de 2025. Mas a própria PF pediu mais prazo porque o governo não fez o investimento necessário para que essa mudança aconteça. Não sabemos se vai ter essa transferência e em que condição ela será feita.
Sem essa prioridade do governo, há riscos de novos retrocessos?
Temos no Congresso uma bancada da bala muito comprometida com a agenda armamentista. A Comissão de Segurança Pública é completamente tomada por esse perfil parlamentar. Mais do que nunca. Pauta projeto de armas o tempo inteiro. Isso gera dividendos políticos para eles, e o governo está sem força. A chance de passar alguma coisa ali é grande. Então, embora estejamos num momento muito melhor do que já estivemos, essa pauta do controle de armas perdeu tração por parte do governo federal. Há pouca gana do governo em comprar essa agenda.
A ousadia da execução de um delator no maior aeroporto do país pode mudar o curso do combate ao PCC?
Esse caso joga luz sobre o envolvimento da Polícia Civil no crime e o bico de policiais militares na proteção de uma pessoa envolvida com o crime. Além disso, exibe o poderio bélico e a ousadia do PCC. Mas esse tipo de investigação é muito mais útil no combate ao crime, por impactar as finanças da facção, do que operações de policiamento ostensivo que apreendem drogas e prendem pessoas na ponta da linha.
Essa execução teve armas de grosso calibre. Como contrapor o poderio bélico do crime organizado?
Essas armas chegam pelas fronteiras, desmontadas. E não temos um sistema estruturado que invista no rastreamento da origem. Vemos um aumento de apreensão de pistola, de fuzil, porque houve um aumento de circulação nos outros anos. Mas é preciso rastrear, entender qual é a origem dela e para onde ela foi.
E o que falta para isso?
Hoje falta especialização nas polícias para uma análise correta do perfil dessa arma apreendida. Também não há bons bancos de dados que registrem as armas. É preciso fazer uma conexão com a Polícia Federal, que tem um centro de rastreamento de armas. Temos um gargalo enorme que é o Exército. As polícias estaduais têm muita dificuldade de acessar o Sigma, o sistema do Exército onde tem registro das armas. Quando há conexão das polícias, conseguimos tirar de circulação quem está mandando a arma.
Esse trabalho de integrar as polícias é de quem?
Primordialmente, é do governo federal.
E ele tem feito isso?
Infelizmente, pouco ao longo dos anos. E é por isso que estamos como estamos.
Qual a sua posição sobre a PEC anunciada pelo Ministério da Justiça?
Seria interessante organizar um pouco mais a competência de governo federal nessa agenda, mas o que falta é articulação política. Mas não me parece que a segurança pública seja uma prioridade do governo federal. Me preocupa que essa PEC seja muito mais uma cortina de fumaça com pouca chance de avançar da forma como ela está. E acabamos deixando de investir energia nas políticas concretas que o governo federal pode fazer, como articulação contra o crime organizado ou o fortalecimento do financiamento via Fundo Nacional de Segurança Pública.
Como encarou o caso da morte de um estudante de medicina pela PM em São Paulo nesta semana?
Esse caso fez mais barulho porque é um estudante de classe média, embora as mortes aconteçam o tempo todo na periferia. Não é uma prioridade política dessa gestão fazer o correto uso da força. Na verdade, existe uma banalização do uso da força da polícia por essa gestão.
Nesse período de 25 anos que o Sou da Paz existe, a violência no Brasil mudou bastante?
Sim. Nos anos 1980 e 1990, tínhamos um perfil de violência homicida muito elevado, especialmente em capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, mas ainda muito ligado a conflitos interpessoais e menos relacionado a uma criminalidade organizada tão estruturada e espalhada como temos hoje. Além disso, vimos o surgimento de novos crimes, como os virtuais e as fraudes, e uma violência política crescente, a partir do debate político-eleitoral.