Rebollal usava da prerrogativa de CAC para comprar munição legalmente e, depois, repassá-la para traficantes
Reportagem publicada pelo O Globo (clique para acessar o texto original)
Dez meses depois de ser preso acusado de fornecer munição para a maior facção do tráfico do Rio, o colecionador de armas Vitor Furtado Rebollal Lopez já está novamente nas ruas. Em agosto passado, Rebollal foi condenado a apenas três anos de prisão e, duas semanas depois, teve a prisão revogada pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, que considerou a pena baixa para mantê-lo atrás das grades. A soltura, entretanto, tem relação direta com a política armamentista do governo federal: ao longo da investigação e do processo, Rebollal foi beneficiado pelos decretos do presidente Jair Bolsonaro que aumentaram o limite de armas e munição para caçadores, atiradores e colecionadores — os CACs — e, assim, ele conseguiu se livrar de acusações que poderiam aumentar sua pena em pelo menos 12 anos.
A investigação que culminou na prisão de Rebollal teve como base escutas feitas com autorização da Justiça que revelaram que o colecionador usava da prerrogativa de CAC para comprar munição legalmente e, depois, repassá-la para traficantes. As ligações interceptadas mostraram que ele contava com o auxílio de sua namorada e de seu cunhado, para vender os cartuchos. Em janeiro passado, a Justiça decretou a prisão do trio e expediu um mandado de busca para a casa de Rebollal.
O colecionador e a namorada foram capturados em Goiânia (GO), quando trafegavam num carro com 11 mil cartuchos para fuzil. Já no imóvel do casal, no Grajaú, Zona Norte do Rio, um arsenal foi encontrado: 26 fuzis — 25 iguais de calibre 5,56 e um 7,62 —, 21 pistolas, dois revólveres, três carabinas, uma espingarda e um rifle. O armamento, cujo valor total estimado é de cerca de R$ 3 milhões, foi exibido durante a coletiva de imprensa sobre a prisão de Rebollal, na Cidade da Polícia, no dia seguinte à prisão.
Passe livre
No entanto, por conta das medidas tomadas pelo governo federal, nem a munição apreendida em Goiás nem o arsenal achado no Rio geraram acusações formais contra o casal na Justiça — mesmo com a suspeita de ligação do material com a maior facção do tráfico fluminense. Sobre os cartuchos encontrados no carro com Rebollal, a Polícia Civil de Goiás registrou, num relatório encaminhado à Justiça do estado, que “não há que se falar em crime, pois a conduta praticada estaria respaldada pela legislação que se aplica aos CACs, bem como regulamentos do Exército Brasileiro” — ou seja, como o colecionador tinha autorização para transportar a munição, ele não foi preso em flagrante e tampouco processado por seu porte ilegal.
Até 2019, contudo, Rebollal não poderia sequer adquirir munição para fuzis: antes dos decretos de Bolsonaro, alguns calibres restritos, como o 5,56 e o 7,62, não eram liberados para CACs, e a apreensão desses cartuchos com integrantes da categoria configurava crime com pena de até seis anos.
Pela legislação atual, as 54 armas achadas na casa de Rebollal também estavam em situação legal. Segundo o promotor Rômulo Santos, responsável pela investigação, “como as armas estavam cadastradas em nome dele, a posse era regular, e por isso ele não foi autuado”. Os decretos assinados por Bolsonaro tornaram possível que o colecionador possa manter um arsenal em casa. Antes do atual governo, atiradores eram autorizados a ter, no máximo, 18 armas — e fuzis eram proibidos. Portanto, se a mesma apreensão fosse feita até 2019, Rebollal responderia pela posse ilegal do armamento de uso restrito, mais um crime com pena de até seis anos. Depois das mudanças, integrantes da categoria são autorizados a ter até 60 armas, e até 30 delas podem ser fuzis.
Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas, a política armamentista do governo abriu uma brecha “para que criminosos ajam impunemente sob um manto de legalidade”.
— Sob a perspectiva da fiscalização, ficou muito mais difícil combater crimes relacionados a venda, posse e porte de armamento. CACs ganharam, do governo, permissão para adquirir e transportar uma quantidade enorme de munição, capaz de abastecer uma tropa inteira. No caso do Rebollal, a autorização possibilitou que ele tivesse em casa mais de 20 fuzis iguais, do mesmo calibre e modelo. Isso não faz sentido da perspectiva do colecionador, que em tese deseja juntar várias armas diferentes, e da perspectiva do tiro desportivo, porque atiradores competem em categorias diferentes e usam armas diferentes. Um acervo como esse só faz sentido para o crime organizado: pela perspectiva do criminoso, é interessante ter armas iguais para só comprar munição de um calibre — explica Langeani.
Como Rebollal se livrou de responder pelo porte ilegal da munição e pela posse ilegal do arsenal, a única acusação que restou foi a de associação para o tráfico, cujas principais provas eram as conversas interceptadas. Numa delas, a namorada de Rebollal e o irmão dela falaram sobre o fornecimento de munição para o Complexo do Lins e a Favela do Jacarezinho, ambos na Zona Norte. Ele disse que pegou “uma caixa de calibre .40 e trouxe no Lins e tem mais uma de .40 pro Jacarezinho”. O cunhado do atirador também mencionou, em outros diálogos, entregas de cartuchos no Morro do Engenho e em Manguinhos.
Escuta flagrou venda
Rebollal chegou a ser citado numa das ligações em meio a uma negociação de venda de munição. Na ocasião, um intermediador reclamou ao irmão da namorada da postura do colecionador: “Seu cunhado parece que tá com medo. Quer que pegue primeiro o dinheiro para depois levar o bagulho lá. O cara queria que eu fosse lá no Rato (Molhado, favela da Zona Norte), pegasse o dinheiro com os caras referente a 20 caixas para depois levar. Ele é maluco”.
Com base nas conversas, a juíza Cristiane da Silva Brandão Lima, da 1ª Vara Criminal de São Gonçalo, condenou Rebollal a três anos de prisão e determinou a cassação de seu certificado de atirador pelo Exército. Segundo a sentença, de 23 de julho, a pena deveria ser cumprida no regime semiaberto — mas duas semanas depois, atendendo a um pedido da defesa, a 3ª Câmara Criminal libertou o colecionador.
— Não cabe prisão preventiva, antes do trânsito em julgado, nos crimes com pena máxima menor que quatro anos. Por isso, a prisão do Vitor Rebollal foi revogada. Atualmente, ele está sob monitoramento eletrônico, com tornozeleira — explica Kleiton da Matta, advogado do atirador, que defende a inocência de seu cliente e vai recorrer da sentença.
Após a operação contra Rebollal, a Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos (Desarme) abriu um nova investigação para apurar se o material apreendido seria repassado a criminosos. Até hoje, o inquérito não teve um desfecho. As armas e os cartuchos apreendidos seguem em poder da polícia. Em junho passado, a Justiça determinou que 26 fuzis e quatro das pistolas encontradas na casa de Rebollal sejam doados à Polícia Civil, para que sejam usados por agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE). Os projéteis de fuzil achados no carro do colecionador seguem acautelados em Goiás e, segundo o advogado de Rebollal, só não podem ser devolvidos porque seu certificado de registro foi cassado.