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    O Estado de S. Paulo | SP e oito Estados mais que dobram registro de armas de fogo para civis

    24 de julho de 2021 às 11:48

    Concessão de equipamento a cidadãos comuns sobe 67% no 1º semestre, ante o mesmo período de 2020. Analistas veem efeito da política de flexibilização no setor, com 31 mudanças de normas na gestão Bolsonaro

    Por Natália Santos e Gustavo Queiroz (leia a matéria completa publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo)

    Polícia Federal liberou a civis o equivalente a 419 armas de fogo por dia no País no primeiro semestre deste ano. A quantidade, que totalizou 76.329 novas armas em circulação, representa crescimento de 67% ante os primeiros seis meses do ano passado. É a maior taxa em pelo menos 13 anos, demonstrando a alta vertiginosa sentida sob a gestão Jair Bolsonaro, defensor de maior acesso a armas.

    A elevação nas concessões destinadas a cidadãos comuns foi notada em todos os Estados. O crescimento desse tipo de registro mais que dobrou em São Paulo e outros oito Estados. Os dados foram obtidos junto à PF pela agência Fiquem Sabendo, especializada no acesso a informações públicas.

    Em números absolutos, Minas (10.916), Rio Grande do Sul (8.499) e Santa Catarina (6.460) lideram no primeiro semestre. Em termos proporcionais à população, Rondônia (16,9 novas armas por 10 mil habitantes), Mato Grosso (15,8) e Acre (12,8) estão na frente.

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    A advogada Thaís Sousa, de 27 anos, em um clube de tiro Foto: WEIMER CARVALHO/ESTADÃO

    Os números dizem respeito a armas concedidas na categoria “cidadão”, que representa civis que buscam a autorização para arma própria, geralmente com intuito de defesa pessoal. Armas concedidas a órgãos de segurança pública ou ao Judiciário são contabilizadas em outras categorias pela PF. 

    Para Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, um dos motivos é a flexibilização por meio de portarias e decretos que facilitam o acesso. Desde o início da gestão Bolsonaro, são 31 alterações de normas, diz estudo do Sou da Paz.

    Antes, quem quisesse ter arma tinha de apresentar documentação comprovando que a sua justificativa era verdadeira. Por exemplo: um indivíduo, que tem um comércio que já foi assaltado três vezes, teria de apresentar todos os boletins de ocorrência feitos e comprovar que as ações de proteção da polícia foram insuficientes para fazer cessar os roubos.

    Agora, por outro lado, a forma de comprovar “necessidade efetiva” para a posse de arma mudou. Decreto de junho de 2019 diz que a PF presume “a veracidade dos fatos e circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade” entregue pelo cidadão e que examinará os documentos. Nesse caso, basta a declaração detalhando a razão da necessidade da arma para entrar com o pedido.

    “Na prática, a Polícia Federal tem efetivo muito insuficiente para processar todas essas solicitações por mês e não vai fazer uma investigação detalhada de cada caso”, diz Natália. “Essas justificativas foram esvaziadas e quando isso acontece, esvazia o entendimento que arma é um produto controlado.”

    Além da flexibilização das regras, Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta outros motivos para a alta: “As pessoas acham que estão mais seguras se estiverem armadas e, além disso, há um governo que vende essa ilusão.” As consequências desse aumento já são conhecidas, diz ele: “Quanto mais armas de fogo tem em uma população, maior é o número de homicídios, de suicídios e de acidentes.”

    Divulgado este mês, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou aumento de armas de fogo no País como uma das explicações para a escalada de mortes violentas. Houve ainda mais armas de fogo em assassinatos registrados: 78% deles tiveram uso instrumento. Em 2019, foram 72,5%.

    A elevação também reacendeu o debate sobre fragilidades no controle da circulação de armas, com maior risco de desvio para o crime organizado e roubo de arsenais particulares legalizados. “Ao mesmo tempo em que está multiplicando o número de novas armas, as ferramentas de fiscalização e controle de circulação estão sendo precarizadas, ao invés de serem melhoradas”, argumenta Natália.

    “As fronteiras são porosas e já há dificuldade gigantesca de fazer controle no País. Quanto mais desregulamenta, mais desse problema”, diz Alcadipani.

    Pró-arma.

    O diretor legislativo da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais, coronel Elias Miler da Silva, não vê elo entre compra maior de armas e mais crimes. “Estou ameaçado, vou na polícia. Preencho os requisitos, quero uma arma. Se o Estado não me dá, tem de proteger. Se não me proteger, tem de indenizar a minha família e a mim”, defende. “A pessoa tendo preparo psicológico e técnico, a arma é grande instrumento de defesa”, conclui, e defende critérios mais rígidos para o porte (quando a pessoa pode carregar a arma com ela, fora de casa).

    Já o coordenador da Frente Parlamentar Armamentista, deputado Loester Trutis (PSL-MS) diz não haver “arma legal usada em crime”. A posição, porém, se choca com estudos da área. Análise do Sou da Paz em 2018 sobre armas apreendidas no Nordeste mostrou perfil prioritariamente de origem brasileira, indicando relação entre mercados legal e ilegal, por desvios ou roubos. A constatação foi ao encontro de diagnósticos anteriores que chegaram a conclusões similares. Procurados pelo Estadão, o Palácio do Planalto e o Ministério da Justiça e Segurança Pública não responderam.

    Ameaça.

     Se sentir mais segura foi o motivo que fez a advogada Thaís Sousa, de 27 anos, tomar a decisão de comprar uma arma de fogo este ano. Após receber ameaças vinculadas à sua prática profissional, sentiu a necessidade de ir a um clube de tiro e iniciar o treinamento para uso do instrumento. “Por mais que a gente fale da tutela do Estado, sabe que efetivamente não consegue se sentir 100% protegido”,diz.

    Goiás, onde vive Thais, ocupou o pódio de novos registros na categoria em 2014, 2015, 2016 e 2018. Neste ano, 3,4 mil novas armas foram adquiridas por cidadãos até agora.

    A advogada iniciou o pedido de posse – autorização para ter arma em casa – em maio, um mês após a publicação de quatro decretos que facilitam o acesso. Enquanto aguarda o processo, faz treinos semanais para manusear a arma. “Não adianta só ter licença, é necessário também passar por uma prática habitual, fazer aulas e sentir se realmente está preparado para adquirir a arma de fogo”, conta. 

    Aos poucos, ainda tenta convencer os pais da ideia, já que moram juntos. Diz precisar do instrumento para proteger a família, mas que só ela terá acesso, enquanto os parentes não fizerem o treinamento. Ela diz que a lei precisa ser mais clara quanto ao treinamento contínuo e à justificativa para compra. “Um erro é o cidadão civil achar que por ter arma em sua residência, no local de trabalho, não precisa do treinamento.” 

    O decreto exige que, para um pedido de posse, é preciso ter 25 anos completos, não constar em inquérito policial, não ter antecedentes criminais, comprovar capacidade técnica para manuseio, aptidão psicológica, declarar que tem lugar seguro para armazenar, além da comprovação da necessidade efetiva.

    Thais acredita que muitas mulheres seguem este caminho para se sentirem mais seguras. “Se a gente autorizar um cidadão civil a ter a posse de arma, um meliante vai pensar duas vezes antes de entrar na sua residência”. 

    O que especialistas apontam, em oposição a essa tese, é que a maior presença de armas de fogo potencializa desfechos violentos e fatais em disputas banais, como briga de trânsito, ou agressão doméstica. Em casos de assaltos, dizem os analistas, a presença da arma tende a escalar o confronto, com maior risco de morte para os envolvidos. 

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