Por Isadora Rupp (leia a matéria original publicada pelo Nexo)
Bolsonaro fez associação ao comentar a redução de assassinatos no Brasil registrada no ano de 2021. Especialistas ouvidos pelo ‘Nexo’ explicam o que de fato ajudou a diminuir a violência
Em seu perfil no Twitter, Jair Bolsonaro resgatou na quarta-feira (9) números sobre a queda de homicídios no Brasil divulgados em fevereiro. O presidente relacionou a diminuição da violência à ampliação do número de armas nas mãos da população impulsionada por medidas de seu governo. Segundo quem estuda o tema, o raciocínio está errado.
41,1 mil mortes violentas intencionais ocorreram em 2021 no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É o menor número desde 2007
O número de assassinatos caiu 7% em 2021 na comparação com 2020, segundo dados do Monitor da Violência, parceria do site G1 com o NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A tendência de redução, mostra a ferramenta, é registrada desde 2018.
As entidades realizam o monitoramento dos dados a partir dos números fornecidos pelas Secretarias de Segurança Pública dos estados. São contabilizados vítimas de homicídios dolosos, feminicídios, latrocínios (roubo seguido de morte) e lesões corporais seguidas de morte.
Neste texto, o Nexo traz as reais causas que possibilitaram essa redução e mostra por que os impactos positivos não podem ser atribuídos à política de armas do governo Bolsonaro.
As políticas estaduais e o sistema único
O Monitor da Violência apontou queda de assassinatos em 21 das 27 unidades da federação em 2021. Segundo Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as políticas públicas adotadas nos Estados – responsáveis diretos pelas polícias militar e civil – ajudam a explicar a queda.
Bueno dá o exemplo do Acre, onde a queda dos homicídios foi de 38%. Segundo ela, as polícias acreanas têm atuado junto com o Ministério Público local em forças-tarefas para a realização de investigações.
Programas preventivos, como o Pacto pela Vida, adotado em Pernambuco, e o Ceará Pacífico, no Ceará, também passaram a ter resultados positivos. Tais programas sempre passam pela integração nas ações de segurança pública.
Felippe Angeli, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz, citou outras medidas, como a instalação de câmeras em uniformes da Polícia Militar de São Paulo, em maio de 2021. Com um mês em funcionamento, o índice de letalidade policial registrado foi o menor em oito anos. A média de 50 mortes por mês passou para 22.
Em 2018, o governo federal adotou o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública). A lei garantiu repasse de recursos da União aos entes federativos que cumprem metas de redução da criminalidade e produção de base de dados.
Os recursos do SUSP saem da arrecadação das loterias federais: 80% do dinheiro da União para estados e Distrito Federal tiveram as loterias como origem nos anos de de 2019 e 2021.
É um dinheiro, segundo Bueno, que faz diferença para estados menores como Acre, Roraima e Sergipe. “Esse dinheiro pode fomentar ações em estados e servir para comprar materiais como coletes balísticos, por exemplo. Porque o orçamento para segurança pública em alguns estados acaba indo para a folha de pagamento das polícias apenas”, disse Bueno ao Nexo.
O impacto da mudança demográfica
Após se manter por duas décadas com uma população de cerca de 50 milhões de pessoas com idades entre 15 e 29 anos, o número de jovens no Brasil vêm caindo e, desde 2021, segundo estudo da FGV (Fundação Getulio Vargas) Social, a redução é drástica. Isso influencia positivamente o número de mortes violentas.
Segundo os especialistas ouvidos pelo Nexo, os estudos mundiais da área de segurança pública mostram que o perfil do homicídio no mundo se concentra em homens jovens. Logo, o aumento da idade média em um país tende a diminuir os crimes violentos.
Há um ciclo de criminalidade: começa por volta dos 12 a 15 anos, atinge o ápice aos 18 e se esgota antes dos 30 anos. Em 2014, um estudo do economista Daniel Cerqueira e do pesquisador Rodrigo Moura já indicava essa tendência para o Brasil nos anos subsequentes e trazia uma relação percentual: a cada 1% a mais da proporção de homens jovens de 15 a 19 anos, a taxa de homicídio aumenta 2%.
A sofisticação do crime e as facções
Facções criminosas viraram uma espécie de “agência reguladora” do tráfico de drogas quando são hegemônicas em determinados territórios, como acontece com o PCC em São Paulo, segundo Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do NEV-USP.
Elas estabelecem contratos e termos que acabam reduzindo assassinados em áreas controladas, segundo Manso, algo que acaba se refletindo na redução nos índices de homicídios. As disputas entre facções por domínio de presídios ou áreas de influência nas cidades também são relevantes: quando elas estão em curso, há uma tendência de alta de assassinatos; quando não estão, a tendência é o número cair.
“Em 2018 e 2019 houve uma trégua dos conflitos. É caro e complexo para as facções manter esse nível de atividades”, disse o jornalista. Um ano antes, em 2017, o Brasil registrou confrontos em presídios de estados como o Rio Grande do Norte que deixaram 138 presos mortos.
A profissionalização das facções passa ainda pela ampliação das atividades, que deixou de se centrar somente em tráfico de drogas e armas, segundo a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A lavagem de dinheiro no mercado imobiliário e em atividades comerciais como postos de gasolina, além de atuação em garimpos ilegais na Amazônia, integram as novas operações dos grupos.
Atividades ilegais na Amazônia, aliás, se relacionam com um dado do Monitor da Violência que destoa da tendência brasileira: no Norte, a alta de assassinatos em 2021 foi de 10% em relação a 2020, puxada pela Amazonas: 54% a mais de mortes.
Manso afirmou que, diferente de outras regiões, o Norte conta com um número maior de grupos criminosos locais, que disputam as atividades entre si, o que impacta no número de mortes.
“O empreendimento criminoso busca lucro e oportunidade. As disputas ocorrem para conseguir dominar territórios e cadeias produtivas que auxiliem o empreendimento criminoso. Quando não há choque entre os grupos, eles só administram”, disse o gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz.
Mais armas, mais violência
Ao longo do governo, Bolsonaro assinou cerca de 30 portarias que facilitaram o acesso a armas e munições Também ampliou o número de quantidades máximas.
O armamento por civis foi facilitado por medidas voltadas aos CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores, que podem solicitar porte de arma).
Antes do governo Bolsonaro, por exemplo, a categoria podia comprar uma arma de cada modelo. Hoje, pode comprar cinco. O limite de munição solicitada era de 40 mil cartuchos por ano. Sob Bolsonaro, é de 180 mil.
A facilitação aos CACs tende a fortalecer as milícias e o tráfico. Segundo levantamento do jornal O Globo, há processos que indicam que 25 CACs integram grupos criminosos em nove estados brasileiros.
Pesquisas nacionais e internacionais ligam o acesso facilitado a armas com mais violência. Um trabalho publicado em 2017 pelo National Bureau of Economic Research, do governo dos Estados Unidos, apontou que, depois de 10 anos de adoção de políticas mais permissivas em vários estados, os crimes violentos aumentaram cerca de 15%. Risco de suicídio, morte acidental de crianças e feminicídios são outros problemas relacionados ao posse de armas.
“Ainda é cedo para saber as consequências dessa flexibilização das políticas de armas no Brasil porque está sendo colocada na rua agora. Vai um tempo até essas armas migragem do mercado legal ao ilegal. As evidências científicas dizem o contrário do presidente: a violência letal aumenta com a facilitação”, disse Bueno. De acordo com ela, esta foi a única política pública na área levada a sério por Bolsonaro na área: armar cidadãos como forma de afugentar a “bandidagem”.
Felippe Angeli, do Instituto Sou da Paz, afirmou que não existe uma concertação nacional no tema segurança. “São vários Brasis. Caiu o número, mas não caiu o padrão e o patamar. A chance de morrer de forma violenta continua muito alta no país.”
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/03/13/Por-que-%C3%A9-errado-ligar-a-queda-de-homic%C3%ADdios-ao-maior-acesso-a-armas
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