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    Nexo | ‘Mudar a regulação de armas é central mas insuficiente’

    28 de dezembro de 2022 às 12:43

    Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, fala ao ‘Nexo’ sobre os efeitos da política armamentista de Bolsonaro e o ‘revogaço’ prometido pelo governo que assume em 1º de janeiro

    Reportagem publicada pelo Nexo(clique para acessar o texto original)

    Diante das evidências de que a política armamentista implementada pelo governo Jair Bolsonaro tem servido à violência política e à expansão dos arsenais de facções criminosas, a edição de um novo marco regulatório para a aquisição e o porte de armas no país deve ser uma prioridade para o governo que se inicia no domingo, 1º de janeiro. Essa é a análise de Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, organização especializada nos temas da segurança pública.

    A equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu em seu relatório final a revogação de oito decretos editados por Bolsonaro para facilitar o acesso dos brasileiros a armas e munições. Escolhido pelo petista para comandar o Ministério da Justiça, o ex-governador do Maranhão e senador eleito Flávio Dino (PSB) tem expressado sua preocupação com o clima de terror gerado por ações violentas de bolsonaristas inconformados com a vitória eleitoral de Lula, e indica que o revogaço será feito com rapidez.

    Vários pontos das regras da atual gestão já foram derrubados pelo Supremo Tribunal Federal, alguns após anos de vigência, mas diversos outros continuam em vigor. O julgamento a respeito deles está travado por um pedido de vista (mais tempo de análise) do ministro Kassio Nunes Marques, que se mostra um aliado de Bolsonaro dentro da corte. Além das alterações normativas para compras futuras, Langeani destaca que Dino precisará tratar do estoque de armas acumulado nas mãos de civis nos últimos quatro anos.

    As regras editadas pelo atual governo chegaram a permitir que uma mesma pessoa comprasse até 60 armas e a liberar a compra por cidadãos comuns de fuzis semiautomáticos, antes restritos às forças públicas de segurança. O arsenal dos CACs Ao mesmo tempo, os sistemas de monitoramento dessas armas, feitos pela Polícia Federal (no caso de armas para defesa pessoal) e pelo Exército (no caso dos CACs, os colecionadores, atiradores desportivos e caçadores), permaneceram com uma série de falhas.

    “O Brasil já tem uma legislação que prevê um marco jurídico para se fazer uma campanha de entrega voluntária, então a partir de janeiro já daria para o governo atualizar os valores para cada arma e começar a receber as armas”, disse Langeani ao Nexo. Segundo ele, para conseguir receber os fuzis, é provável que o governo tenha de pagar valores praticados no mercado, e não somente quantias simbólicas, como costuma ocorrer em campanhas do tipo. Nesta entrevista, concedida por telefone na quarta-feira (28), Langeani fala sobre as prioridades e possibilidades do futuro governo para desmontar a política armamentista de Bolsonaro e superar os problemas deixados por ela.

    De que forma a questão armamentista é uma urgência para o futuro governo?

    Bruno Langeani

    Primeiro, temos a questão de como essa temática das armas tem impactado o crime organizado. Temos visto uma série de investigações policiais mostrando que CACs têm sido recrutados como laranja para comprar armas e repassar para o crime organizado. Isso tem ficado muito premente. O segundo fator que põe urgência nessa pauta é o uso político de armas por apoiadores do presidente Bolsonaro, para praticar atos terroristas, atos de violência política que também se intensificaram pelo menos desde setembro para cá.

    Uma outra questão é relacionada ao próprio cumprimento das decisões do Supremo Tribunal Federal. Tivemos em setembro uma série de decisões apontando inconstitucionalidades nos decretos, seja por uma avaliação de que o governo recebeu poder de regulamentar mas estava legislando por decreto, seja por apontar que alguns excessos vão contra o dever do Estado de promover segurança pública. Apesar de as decisões terem barrado pontos dos decretos, elas acabam criando uma certa lacuna, porque obviamente não cabe ao Supremo detalhar, por exemplo, o limite de armas ou calibres que podem ser liberados. O Supremo só disse o que não era razoável, mas fica um buraco que o governo novo precisa preencher.

    Há uma necessidade de organizar o regulamento desse tema após as decisões do Supremo. O novo governo vai ter que revogar as medidas que ficaram muito pulverizadas. Antes de Bolsonaro, tínhamos praticamente dois decretos que cuidavam do tema de armas no Brasil. Um que regulamentava o Estatuto do Desarmamento, dava os detalhes sobre os procedimentos de compra e de porte, e um que tratava dos produtos controlados em geral, indicando calibres permitidos, calibres restritos, questões mais técnicas ligadas ao Exército. Quando Bolsonaro entra, ele faz uma pulverização que acaba virando um caos jurídico nesse tema. Foram mais de 40 decretos e portarias. Para além dos excessos e inconstitucionalidades, portanto, as regras ficaram muito pulverizadas. Então para o novo governo não basta revogar esse entulho.

    Vai ser preciso colocar novas regras no lugar. Possivelmente isso vai ter de ser feito em etapas: uma primeira leva de revogações, um regulamento novo para o Estatuto do Desarmamento, um novo decreto de produtos controlados, algo que envolve não só o Ministério da Justiça mas também o Exército… Então acredito que vai ser um processo longo, e não algo que se resolva em janeiro.

    As prioridades definidas pela equipe de transição nesse tema são adequadas? Acrescentaria outras?

    Bruno Langeani

    Está adequado, pega os pontos mais graves em termos de liberações de Bolsonaro. O que fica para uma segunda etapa são coisas que de fato demandam um estudo um pouco maior. Estou falando, por exemplo, do regulamento de produtos controlados, que envolve o Exército, que vai trazer mais detalhamento sobre acessórios, peças etc. Isso não é algo que pode ser feito muito rapidamente.

    Outro ponto que também demanda uma negociação política, sobre o qual o [ex-]governador Flávio Dino já disse que vai conversar com Lula, é a questão do passivo. A regra nova vai indicar o que pode ser comprado pelo cidadão, para o futuro, mas temos o passivo das centenas de milhares de armas que já foram compradas. Algumas delas, o próprio Supremo disse que não podem ter usos civis, como é o caso dos fuzis. Com relação a esse passivo, há um estudo a ser feito, para saber se se vai proibir a compra de munição para esse tipo de arma, se vai haver um programa de recompra — e aí precisa ser definido um valor, uma logística de como isso vai ser feito. Então me parece que foi feita uma modulação no tempo entre o que é urgente, o que precisa ser feito já em janeiro, e o que precisa de um amadurecimento um pouco maior, até para o governo tomar pé das quantidades de armas que entraram em circulação. Para se ter uma ideia, tanto o Exército quanto a Polícia Federal não compartilharam com a transição dados sobre qual é o estoque de armas em cada banco de dados. É impossível sem esses dados fazer um planejamento minimamente coerente e que seja exequível.

    Como uma campanha de devolução das armas ocorreria na prática?

    Bruno Langeani

    O Brasil já tem uma legislação que prevê um marco jurídico para se fazer uma campanha de entrega voluntária. Então a partir de janeiro já daria para o governo atualizar os valores para cada arma e começar a receber as armas voluntariamente. A lógica anterior era de se pagar um valor simbólico, e não um valor de mercado para essas armas. Havia uma gradação, para pistola se pagava mais do que para revólver, para carabina se pagava mais do que para pistola… mas era um valor simbólico. Para esses fuzis [comprados sob as regras editadas pelo governo Bolsonaro] é necessário fazer uma adaptação, e pagar um valor mais próximo ao de mercado. Primeiro porque há um interesse grande do Estado em tirar essa arma de circulação e, se não oferecer um valor alto, é possível que essas pessoas queiram vender suas armas no mercado ilícito. Além disso, vários desses fuzis são adequados para o uso nas polícias, nas Forças Armadas, na Força Nacional.

    Nesse caso, os recursos não seriam uma mera despesa, mas sim um investimento. É mais eficiente do ponto de vista administrativo e também passa uma mensagem mais correta para a sociedade, mostrando que o armamento mais pesado tem que estar na mão das forças de segurança, para promoverem a redução da violência para toda a sociedade.

    Como grupos pró-armas têm reagido à perspectiva de mudanças nessa área?

    Bruno Langeani

    Da parte dos consumidores, tem havido uma corrida especialmente para a compra de munição e para pedidos de registro no Exército. Mas acho que há uma promoção de pânico intencional por parte desses grupos pró-armas, que querem deslegitimar o governo que chega. Além disso, com essa corrida, podem jogar o preço [de armas e munições] lá em cima e aproveitar esse pânico para lucrar mais. Mas não há indicativo, e a lei brasileira nem permitiria, de nada muito drástico em termos de mudança. Temos uma lei que permite a compra de armas, e essa lei vai continuar vigorando com Lula. O que vai mudar é que os excessos, como permitir 60 armas por CPF, 5.000 munições por arma, poder comprar armas sem justificar necessidade, vão cair. Não há motivo para pânico, mas sabemos que há setores que se beneficiam ou politicamente ou economicamente com o pânico.

    Há disposição do Exército para aprimorar o sistema de controle dos CACs?

    Bruno Langeani

    É uma incógnita. Nós vimos um comportamento do Exército no governo Bolsonaro absolutamente irresponsável. Até mesmo essa tentativa de atentado em Brasília está na conta do Exército, porque foi o Exército que fez a liberação dessas armas de maior calibre para essas pessoas, que deu mais liberdade para eles transitarem sem serem incomodados. Entendo que essa liberação foi feita inclusive contra a missão constitucional do Exército e do Ministério da Defesa. Acabando a blindagem de Bolsonaro, com essa postura omissa do Ministério Público Federal na pessoa de Augusto Aras [procurador-geral], as coisas vão mudar em termos de pressão sobre o Exército.

    Não apenas uma pressão do governo eleito, mas também dos órgãos de controle. Tivemos uma decisão recente, de 30 de novembro, do TCU [Tribunal de Contas da União] bastante dura com relação à política de armas do Exército. Agora, acredito que as ações do Supremo devem voltar a avançar, não só por conta da saída de Bolsonaro e da diminuição da esfera de influência dos ministros indicados [por ele – Kassio Nunes Marques e André Mendonça], mas também porque haverá novas regras [no tribunal] que impõem limite no tempo dos pedidos de vista. Então o Exército vai deixar, a partir das próximas semanas, de contar com uma blindagem institucional que lhe garantiu editar atos irresponsáveis, sem fundamento técnico, contra a Constituição, sem nenhum tipo de contestação.

    Nós, como sociedade civil, vamos cobrar que isso aconteça, porque tivemos uma série de agentes públicos que assinaram essas medidas, que deram parecer favorável para essas medidas. Estamos vendo armas registradas no Exército sendo vendidas para o PCC, para o Comando Vermelho, sendo levadas para Brasília para atentados… são todas coisas que foram ajudadas por medidas do Exército Brasileiro. Precisamos jogar luz nisso, para não parecer que o Exército foi vítima do governo Bolsonaro. Não, o Exército foi protagonista nessas medidas.

    E quanto ao sistema de controle de armas da Polícia Federal, quais deverão ser os desafios do próximo governo?

    Bruno Langeani

    Um ponto em que temos batido muito como sociedade civil é o de que resolver o marco regulatório é algo central e urgente. Mas é claramente insuficiente. Sabemos que os bancos de dados da Polícia Federal são muito ruins, não são só os do Exército. Sabemos que não há uma integração entre a Polícia Federal e polícias estaduais, e isso não vai acontecer só com decreto ou portaria, demanda que um ministro da Justiça e um secretário nacional de Segurança liderem esse processo. Além disso, temos hoje um setor da Polícia Federal para combate a tráfico de arma que é completamente insuficiente para o desafio do Brasil. Sabemos que funcionários e recursos dependem de decisões políticas. Para dar um exemplo, a Polícia Federal, para cuidar de política contra o tráfico de drogas, tem um departamento com mais de 100 profissionais. Quando olhamos para a área de combate a tráfico de armas, que é o motor do crime organizado, não há nem uma coordenação ou uma divisão. A estrutura fica abaixo disso, é apenas um serviço, com apenas um delegado. Isso tem a ver com decisão política e com como o tema é enxergado dentro da instituição. É preciso ter uma mudança, sob o novo chefe da Polícia Federal, para reequilibrar essas forças.

    Quais são suas perspectivas a respeito da capacidade do novo Ministério da Justiça para implementar as medidas prometidas?

    Bruno Langeani

    Há bons nomes e nomes não tão bons. O que dá um otimismo é que as declarações e os direcionamentos têm sido dados de uma forma muito clara, muito transparente e elencando o que de fato é prioritário para o país. O fato de eles terem usado tanto tempo e energia em falas sobre a temática das armas e sobre a questão da despolitização partidária de polícias mostra que há uma clareza de quais são as urgências do país. Além disso, até o momento, pelo menos nas temáticas de armas e polícia, há abertura [da equipe de transição] para interlocução com organizações da sociedade civil e também com associações de policiais, o que é bastante importante para a pasta. Com relação a outros pontos, dado o furacão em que Dino está assumindo, acho que nem deu tempo de ouvirmos as propostas para as outras áreas. Flávio Dino na verdade se tornou um ministro da Justiça de fato mesmo antes de assumir, porque existe um completo vácuo de poder por omissão de quem deveria estar trabalhando para garantir a segurança das instituições e da posse. Essas pessoas estão desaparecidas. Se não fosse esse protagonismo puxado por Dino, estaríamos numa situação muito pior.

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