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    Lunetas | Arma não é brinquedo: os riscos dos clubes de tiro para crianças

    25 de abril de 2023 às 04:00

    Especialistas comentam os riscos de ensinar crianças a praticar tiro esportivo no país onde armas de fogo são responsáveis pela maior parte das mortes violentas

    Crianças com armas na mão disparam em alvos sob aplausos a cada tiro. A cena aconteceu em um “evento recreativo” de um projeto denominado “atirador mirim”, em Jataí (GO). Enquanto algumas pessoas celebravam as imagens publicadas nas redes sociais do clube de tiro, outras criticavam a atividade com comentários como “lugar de criança é na escola” e “brincando com brinquedo, não com armas”.

    A repercussão chegou aos órgãos públicos de Goiás, que recomendaram a suspensão imediata do curso. Segundo o documento do Ministério Público, o clube foi proibido de fazer qualquer atividade prática ou teórica de tiro desportivo com crianças e adolescentes menores de 14 anos. Entre outros pontos, a justificativa se refere ao prejuízo à integridade psíquica das crianças ao serem expostas a armas de pressão, que simulam arma de fogo; a contrariedade ao princípio da proteção integral aos direitos das crianças e dos adolescentes; e a preocupação com o contato de crianças com armas de fogo ou objetos similares diante do aumento de ataques violentos às escolas do país. Já a Defensoria Pública de Goiás recomendou também que as redes sociais criem uma equipe de monitoramento e moderação para publicações que incentivem a violência, com destaque para o Discord, Twitter, TikTok, Telegram e WhatsApp. 

    O responsável pelo clube apagou as imagens das redes sociais e publicou uma nota informando o cancelamento do projeto, reiterando que “repudia qualquer forma de violência e ódio, especialmente aqueles que ocorrem nas escolas”.

    Quando as armas viraram ‘brinquedos’? 

    Em uma busca rápida na internet, a equipe do Lunetas encontrou várias imagens de meninos e meninas apontando armas de pressão, como as utilizadas em airsoft, posando para fotos ou praticando tiros ao alvo em centros de treinamentos. No Distrito Federal, um clube divulgou, em 2019, um vídeo em que pais e mães de crianças matriculadas defendem a atividade com argumentos como “construir uma nação forte” e “incentivar a gostar de tiro”.

    Airsoft é uma uma modalidade esportiva de tiro em que jogadores competem individualmente ou em equipes em uma simulação de combate militar. A prática utiliza equipamentos similares a pistolas e rifles, que disparam bolas de borracha por meio de pressão a gás com velocidade reduzida.

    Para o policial federal Roberto Uchoa, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor do livro “Armas para quem? A busca por armas de fogo”, crianças que participam de atividades em clubes de tiros não têm maturidade para tomar as decisões que a atividade, muitas vezes em caráter competitivo, exige. “Essas crianças deveriam estar brincando e não sendo demandadas para tomarem decisões dentro de um esporte que envolve situações complicadas e com objetos que podem feri-las, senão não usariam equipamento de proteção individual”, ressalta.

    Nos últimos quatro anos, de acordo com informações do Exército, mais de 1.400 licenças para a abertura de novos clubes de tiro esportivo no país foram expedidas. É como se, a cada dia, um clube abrisse as portas. A quantidade de pessoas com autorização para posse de armas nesse tempo aumentou sete vezes, correspondendo a mais de 800 novos cadastros diariamente e a liberação de 619 armas por dia.

    O Supremo Tribunal Federal (STF) mantém suspensos, desde setembro de 2022, os decretos que flexibilizam a compra e o porte de armas. Com o “revogaço” realizado pelo presidente Lula em janeiro deste ano, novos registros de clubes e escolas de tiro e também para CACs foram barrados. Esta semana, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou parecer para um projeto de suspensão do decreto do presidente, mas o texto ainda seguirá para votação.

    Entre os decretos assinados pelo presidente Lula em caráter emergencial, está o de número 11.366/2023 que proíbe a prática de tiro esportivo, com armas de fogo ou armas de ar comprimido, para menores de 14 anos, e prevê permissão a adolescentes entre 14 e 18 anos mediante autorização judicial. Antes, além de não haver diferenciação etária, a autorização podia ser concedida pelos pais ou responsáveis. Desde então, um grupo de trabalho se formou para apontar melhores práticas sobre a questão a médio e longo prazo. Além de discutirem um novo marco regulatório para o setor armamentista, foi determinado pelo GT o recadastramento de todas as armas compradas a partir de maio de 2019.

    Mesmo com regras específicas, a prática chega às crianças não só por influência da família, mas também como opção de entretenimento em passeios, como em estandes montados em shoppings que oferecem serviço de tiro de airsoft. A maior preocupação, de acordo com o especialista, é a naturalização do uso de armas entre crianças, pois, “ensinar a manusear a empunhadura, a mirar, engatilhar e municiar, são práticas comuns ao uso de armas de fogo”, argumenta Uchoa. 

    “Se hoje enfrentamos um problema de ataques a escolas com arma branca, será que é interessante a juventude começar a saber mexer em outras armas?”

    Quando o assunto é segurança pública, os efeitos desse aumento da circulação de armas de fogo serão a longo prazo, como explica Uchoa, considerando que as armas são bens que duram mais de 40 anos. “Ainda sofremos os efeitos da corrida armamentista da década de 1980, quando muitas armas utilizadas em crimes foram adquiridas em lojas de departamentos, sem registro federal”, recorda.

    Crianças e adultos com armas

    Segundo o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei Federal nº 8.069/90), em seu artigo 242, é proibida a venda, fornecimento ainda que gratuito ou entrega, de qualquer forma, à criança ou adolescente de arma, munição ou explosivos. Mesmo para compra e uso de armas de airsoft, como as utilizadas no Clube de Tiro em Jataí (GO), é necessário ter 18 anos ou mais.

    “A flexibilização do acesso às armas realizada no período de 2019 a 2022 proporcionou o aumento do número de armas na mão de civis, bem como o crescimento do número de clubes de tiro por todo o país. Ao final de 2022 eram 2,9 milhões de armas de fogo em acervos particulares”, comenta Danielle Tsuchida, psicóloga e coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz.

    A especialista também aponta que a concessão do registro de arma para CAC sem fiscalização adequada abre margem para a ilegalidade, com desvios de armas para o crime organizado. De acordo com o Anuário da Violência 2022, o maior número de armas em circulação também pode beneficiar criminosos, já que a facilidade do acesso a armas – inclusive de forma legal, ainda que sejam usadas ilegalmente – tende a reduzir o seu custo.

    Para Tsuchida, quem mais se beneficia com a normalização da posse de armamentos no país são “os fabricantes de armas e as empresas que faturam a partir da sensação de medo e insegurança, tal como as empresas de sistemas de vigilância e videomonitoramento, de detectores de metais, entre outras”. Em 2021, “Gabriel”, uma espécie de “startup” de segurança criada no Rio de Janeiro, chegou a levantar 66 milhões de reais em uma rodada de investimentos liderada pelo Softbank, segundo o The Intercept Brasil. Já a Taurus Armas, maior fabricante de armas leves no país, apresentou lucro de R$635 milhões com 2,3 milhões de armas vendidas ao longo de 2021.

    Um problema de base

    O Brasil é considerado o oitavo país mais violento do mundo, segundo relatório do Escritório de Drogas e Crimes da ONU (UNDOC), além de também ter respondido por 20,5% dos homicídios de todo o planeta, em 2022. Segundo o Anuário da Violência 2022, as armas de fogo são o principal instrumento utilizado para matar, correspondendo a 76% das mortes violentas intencionais (MVI) do país em 2021.

    Tsuchida comenta que “há um movimento de refreamento de clubes de tiro e lojas de armas, porque grande parte dos que estavam se registrando como CACs não estavam interessados em tiro esportivo ou caça, mas sim em portar armas, algo que agora está barrado”, diz. Para ela, proteger a infância e evitar acidentes fatais passa por “fortalecer as regras de controle de armas e aperfeiçoá-las, exigindo por exemplo que proprietários de armas comprovem ter cofres ou outros meios para evitar que crianças e adolescentes as acessem”.

    “Ao encontrar uma arma, a criança pode querer manuseá-la pela simples curiosidade e se machucar ou machucar alguém. A presença da arma em um ambiente violento só potencializa esse risco.”

    O Anuário da Violência 2022 reforça que “em um país de relações violentas como o Brasil, armas são catalisadores do efeito morte, escalonando situações do dia a dia em direção a desfechos fatais”. Tsuchida reforça que “episódios tristes e preocupantes envolvendo adolescentes e jovens, especialmente com ataques às escolas, se potencializam negativamente com o uso de uma arma”, e que é urgente investir para que crianças e adolescentes tenham em suas mãos “livros, máquinas fotográficas, skates, computadores ou quaisquer outras coisas que os permita sonhar um futuro mais justo e que considere suas vozes e potências”.

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