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    Valor Econômico | Homicídios, golpes on-line e violência policial aumentam durante pandemia

    19 de junho de 2020 às 12:14

    Reportagem publicada no Valor Econômico. Acesse o texto original

    Alta de homicídios, golpes on-line, fortalecimento de milícias e violência policial estão entre efeitos da pandemia no Brasil
    Por Amália Safatle — Para o Valor, de São Paulo

    A criminalidade não passou imune aos impactos da pandemia

    A criminalidade não passou imune aos impactos da pandemia de covid-19. O isolamento social nos centros urbanos, que ficou entre 45% e 50% em março e abril, modificou os contornos da violência no Brasil. Crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos, diminuíram, enquanto o tráfico de drogas foi dificultado pelo fechamento de fronteiras internacionais e pela maior facilidade de fiscalização policial. Mas quem vê a queda não se ilude com a aparente boa notícia.

    Especialistas em segurança chamam atenção para os efeitos que a descapitalização provocada pela pandemia causou entre os infratores, levando a ações criminosas de maior impacto. A incidência de violência policial também aumentou no período. Outro desdobramento é o fortalecimento da influência política e social de facções e milícias. Estudiosos também alertam para impactos duradouros da pandemia, como o aumento da criminalidade que decorrerá da crise econômica e do desemprego, comprometendo o futuro de mais uma geração de jovens brasileiros já em situação de vulnerabilidade social.

    Até o momento, com o isolamento social, o país sofreu com a alta em homicídios, crimes violentos letais intencionais, feminicídios e em crimes on-line. Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, afirma que os infratores aproveitam do tema covid-19 para provocar um caos cibernético. “Os hackers criminosos têm como alvo países com infecções crescentes pelo vírus, onde populações e instituições estão vulneráveis e desesperadas por informações.”

    Entre os principais alvos estão os setores de saúde e educação, serviços bancários e financeiros e indivíduos, especialmente os idosos. Segundo ele, grupos como Kaspersky, que oferecem segurança na internet, detectaram no Brasil aumento de 124% em ataques contra dispositivos móveis entre fevereiro e março. Com base no relatório “Fortinet Threat Intelligence Insider Latin America”, Muggah informa que, ao todo, o país sofreu 1,6 bilhão de ataques suspeitos, enquanto o total para a América Latina foi de 9,7 bilhões.

    Questionado sobre como o governo tem se preparado para enfrentar os efeitos da covid-19 sobre as diversas modalidades de crime, o Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou, por meio de sua assessoria, que não poderia comentar o assunto, pois não possui estudo que meça os reflexos da pandemia em relação à criminalidade. “As ações que estão sendo realizadas pela pasta são preventivas e no combate à disseminação do covid-19”, afirmou, em nota.

    De fato, o país não conta com sistema coordenado entre os governos federal e estaduais, o que dificulta o estabelecimento de base de dados nacional. “Existem vários problemas com os dados de segurança pública no Brasil. O esforço de harmonização vem sendo feito pela sociedade civil”, afirma Muggah. Segundo ele, embora o governo federal tenha implementado em 2018 padronização de coleta de dados criminais e sistemas prisionais integrados, incluindo rastreabilidade de armas e munições, material genético, digitais e drogas, ainda há inconsistências nas informações. “A disputa política e gestão ideológica do atual governo em diferentes áreas, incluindo a segurança pública, apenas agrava o cenário”, aponta o diretor do Igarapé.

    Entre os crimes que diminuíram destacam-se aqueles contra o patrimônio – casas, carros, motos, caminhões, galpões. Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getulio Vargas, diz que a queda se explica pela menor circulação de pessoas, bens e cargas, mas também pela configuração do setor produtivo, calcada no sistema “just in time”, em que a produção é ajustada ao consumo. Menos consumo, menos carga circulando. Isso leva as empresas a trabalharem com os menores estoques possíveis, o que explicaria o baixo roubo em depósitos e lojas.

    “Mas, quando a sociedade voltar à circulação normal, a expectativa é que os crimes contra o patrimônio explodam, porque o criminoso ficou sem dinheiro e o Brasil sofrerá crise econômica brutal”, diz. Para ele, embora não haja comprovação por dados quantitativos, a renda do tráfico diminuiu. Entram fatores como a menor circulação de pessoas em festa e o fechamento de escolas, reduzindo a demanda.

    Além disso, ficou mais difícil a droga entrar no Brasil e a fiscalização aumentou, de acordo com Ruy Ferraz Fontes, delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo. “O crime organizado está perdendo renda sistematicamente”, diz. Segundo ele, o traficante não chegará a mudar de ramo para manter o fluxo de caixa e buscar dinheiro vivo, mas poderá produzir outro tipo de delito, como roubo a banco, caixas eletrônicos e transportadoras de valores. Isso requer obtenção de armas no mercado negro com maior poder bélico para furar a blindagem, aumentando o nível de violência, segundo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    Já Tulio Kahn, especialista em segurança e consultor do BID, diz acreditar que os criminosos estejam ainda absorvendo a queda de renda provocada pela pandemia. “Podem até ter migrado, em parte, para outros delitos, mas não é tão simples como parece. Não são tão ecléticos assim como a gente imagina”, diz.

    Segundo Alcadipani, da FGV, o trabalho de inteligência da polícia, com base em escutas, tem identificado movimentação do crime organizado na direção de agências bancárias. Uma dessas movimentações se consumou em maio, no “roubo cinematográfico”, em suas palavras, de agência do Banco do Brasil em Ourinhos (SP). Foi uma ação de 40 criminosos, com drones e destruição de uma base da Polícia Militar.

    Embora a correlação não esteja comprovada por números, estima-se que a alteração na dinâmica do tráfico de drogas teria levado ao aumento da violência, o que seria uma das explicações para a alta dos homicídios, segundo Lima. “As novas dinâmicas do tráfico tendem a ‘tensionar’ e provocar conflitos.” Ele explica que, em geral, a demanda por drogas a princípio não diminui, pois não é tão elástica quanto a oferta.

    “Quem ia ao ponto comprar ou mandava o portador retirar está pedindo para um serviço de entrega qualquer. Este serviço, então, se torna lucrativo, enquanto o ponto fica menos rentável, pois tem custos operacionais, como segurança, transporte e funcionários. Além disso, outros pontos mais próximos das residências dos consumidores passaram a ser mais rentáveis, provocando disputas”, diz.

    O fenômeno segue tendência internacional. Segundo Muggah, as interrupções nos fluxos nos mercados globais de drogas podem ser temporárias, mas têm efeitos a longo prazo no crime em diversos países. Com o caixa se esgotando, ele diz acreditar que as gangues diversificarão os modelos de negócios e terão como alvo bancos, lojas e residências para gerar receita. Sua previsão é de que na América Latina os grupos criminosos recorrerão a sequestros e extorsões à moda antiga para manter o fluxo de caixa. O aumento dos crimes cibernéticos já seria adequação a essa realidade, impulsionado também pelo fato de que a sociedade tem se tornado mais digital, especialmente com o isolamento social.

    Para além da mudança na dinâmica das drogas, há outras explicações para o aumento de homicídios durante a pandemia no Brasil, como conflitos acirrados pela convivência forçada em casa e com vizinhos, além da tensão provocada pela crise econômica e pelo desemprego. Fontes atribui a maior parte dos homicídios em São Paulo a disputas pessoais, em geral por dinheiro, não necessariamente do tráfico.

    Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, chama atenção para dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, segundo os quais o número de mortos em via pública em abril aumentou em relação ao mesmo mês do ano passado. Parece contraditório, já que as pessoas estão mais em casa. Uma explicação seria o fato de que as pessoas vão para a rua fazer seus acertos de contas, o que corrobora a afirmação de Fontes sobre disputas pessoais.

    Em relação à violência doméstica e estupro de mulheres e vulneráveis, os dados soam contraditórios: abril mostra a maior queda nos últimos 16 meses em São Paulo, segundo o Instituto Sou da Paz. De acordo com Carolina, 70% desses são crimes praticados contra crianças ou menores de 18 anos, em casa, por pessoas conhecidas da vítima. Para ela, a variação não reflete diminuição do crime de fato, mas do registro nas delegacias, já que as vítimas se encontram sob o jugo do agressor e fora dos colégios. Na escola, é possível identificar o comportamento diferente da criança, o que levanta suspeitas sobre violência doméstica e pode conduzir a investigação.

    Segundo Carolina, governos, polícias e empresas como Natura e Avon estão fazendo campanhas para facilitar o boletim de ocorrências eletrônico e formar redes de apoio às vítimas. O Brasil segue a experiência de outros países, onde farmácias e supermercados criaram códigos para que a mulher denuncie a violência no momento da compra.

    O acirramento de disputas pessoais e da violência doméstica, contudo, tem ganhado contornos mais perigosos com o estímulo ao uso de armas de fogo dado pelo governo Bolsonaro. “O fato de haver mais armas em circulação é um problema sério. Não que seja uma fórmula matemática rasa – são muitas variáveis -, mas a facilidade de acesso a uma arma de fogo, principalmente em caráter ilegal, pode elevar o número de homicídios”, afirma Fontes.

    Não é fácil isolar os fatores que levam ao aumento da violência, identificando o que se deve aos efeitos da pandemia e o que é influenciado pelo contexto. Lima destaca que as taxas de homicídios no Brasil, incluindo São Paulo, vinham em queda havia mais de dez anos, mas voltaram a crescer desde setembro de 2019.

    “A única variável nacional que explicaria esse crescimento é o incentivo ao consumo das armas deste governo. Houve oito decretos governamentais para facilitar posse e porte de armas, e com maior quantidade de munição. Há fatores indiretos para o aumento dos homicídios, mas este aparece como o principal fator específico”, diz Lima. Segundo ele, trata-se de uma hipótese, pois ainda é cedo para comprovação, mas serve como um sinal de alerta. “Este sinal estava pouco visível porque o debate político acabou tomando conta da discussão sobre segurança pública.”

    Na esteira da cultura de violência e da narrativa armamentista estimuladas pelo Estado, o especialista acrescenta que a letalidade policial cresce nos últimos anos e bateu o recorde no Rio em 2019. Em abril, o pior abril dos últimos 18 anos, foram 177 mortes por intervenção do governo do Estado do Rio, alta de 43% em relação a abril de 2019. “Tudo isso se dá em função de discursos políticos como o do [Wilson] Witzel, de ‘mirar na cabecinha’, do Bolsonaro com a defesa da exclusão de ilicitude e assim por diante. Nós temos no Brasil um ambiente que autoriza a violência policial como algo aceito”, diz Lima.

    O padrão operacional do combate ao crime no Brasil estimula o confronto, diz. “É padrão de guerra, ou seja, derrubar o inimigo em fração de segundos. O inimigo, no caso, é o bandido do crime organizado. Por isso, os policiais pulam no quintal já com a arma em punho”, afirma. Para Lima, se boa parte das mortes decorrentes de confronto fossem bem investigadas, configurariam exclusão de ilicitude, quando os policiais agiram em legítima defesa. A questão é melhorar a investigação e o esclarecimento de crimes para evitar que se chegue ao confronto.

    Para Lima, o caso de João Pedro de Mattos, jovem de 14 anos morto no mês passado em operação policial no Complexo do Salgueiro, no Rio, revela um confronto com falta de planejamento, inteligência, investigação e trabalho para acabar com a receptação de drogas e armas. A Polícia Civil do Rio, que participou da operação, não respondeu à reportagem até o fechamento.

    João Pedro foi um dos três jovens vítimas de operações policiais no Rio no intervalo de 20 dias. Também foram mortos Iago César, de 21 anos, na Favela de Acari, e Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, no Morro da Providência. As mortes levaram o ministro Edson Fachin, do STF, a proibir esse tipo de ação durante a pandemia, a não ser em casos excepcionais. A população está em confinamento, sofrendo efeitos do desemprego e dependendo de ações assistenciais, como distribuição de cestas básicas e donativos.

    Antonio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz, que prestou assistência à família do jovem, relata que campanhas de doação às comunidades volta e meia eram surpreendidas por operações policiais. Segundo ele, havia planejamento logístico para evitar aglomerações, até que vinha uma operação e o desmontava. “Outro dia cheguei em um barraco e, quando a senhora entendeu que eu estava levando cesta básica, ela se desmanchou nos meus braços agradecendo por estar ali, pois não tinha mais nada para comer. Você imagina, nesse cenário todo, ainda ter que fugir de bala perdida”, diz. A Rio de Paz é filiada ao Departamento de Informação Pública da ONU para redução de homicídios. Realiza manifestações pacíficas desde 2007, inclusive para reduzir morte de policiais.

    Para Costa, além de causar transtorno para a comunidade, destruir os barracos, interromper a vida de moradores e traumatizar crianças, as operações policiais são pouco eficazes, pois muitas vezes apreendem quantidade irrisória de armas e drogas, além de expor a vida dos próprios policiais. “São operações que não seguem planejamento maior. Os melhores policiais vêm nos relatar que se sentem perdendo tempo”, diz.

    O coronel Mauro Fliess, porta-voz da Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio, afirma que as operações da PM são precedidas de planejamento elaborado a partir de informações da área de inteligência para localizar e prender criminosos e apreender armas. “Atuamos diariamente em cenário extremamente hostil. Nossos policiais são obrigados a enfrentar criminosos fortemente armados, que não medem as consequências quando disparam suas armas de guerra e lançam granadas. Sabem de antemão que, caso um morador seja atingido, a responsabilidade cairá sobre a PM. Mas não podemos retroceder. Não podemos encarar com naturalidade imagens de criminosos portando fuzis, pistolas e granadas. Nos cinco primeiros meses deste ano, já apreendemos mais de 3 mil armas de fogo, entre as quais 150 fuzis”, afirma.

    Em relação à distribuição de donativos nas comunidades feita por ONGs, Fliess afirma que os batalhões de área devem ser avisados previamente e estarão à disposição para apoiar essas ações. “A própria PM, como instituição, tem atendido as famílias mais vulneráveis nas comunidades. Os policiais militares das UPPs já distribuíram mais de 20 toneladas de alimentos”, diz.

    As exacerbações de policiais têm sido alvo de protestos nos EUA e em vários países. No Brasil, porém, o governo federal excluiu dados sobre a violência policial de 2019 do relatório anual Disque Direitos Humanos. Como Lima, Costa diz que a cultura de violência foi exacerbada neste governo, que na campanha eleitoral usou como símbolo a mão “fazendo arminha”. Para ele, o legado que o governo quer deixar não é o de uma sociedade armada em casa, mas de uma sociedade portando pistola na cintura e no porta-luvas do carro. “Diante de uma morte como a do João Pedro, a gente se pergunta quantos dedos puxaram o gatilho. Ali não tem só o dedo do policial.” Procurado, o Ministério da Justiça não respondeu até o fechamento desta edição.

    Em São Paulo, as mortes por intervenção da Polícia Militar cresceram 54,6%, com 116 casos. No fim de semana, vídeos flagraram duas operações de violência exacerbada contra pessoas rendidas, uma na zona norte da capital e outra em Barueri (SP). Há, ainda, investigação sobre a participação de dois policiais militares na morte de Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, em Diadema (SP). A hipótese do Fórum Brasileiro de Segurança Pública é que menor controle social, com as ruas vazias, deixa os policiais à vontade para não seguir protocolos sobre uso da força.

    Por meio do Twitter, o governador de São Paulo, João Doria, repudiou os dois atos de violência policial ocorridos no fim de semana. “Absolutamente condenável (sic) as atitudes dos policiais militares que abusaram da força, em duas ações policiais, uma na Capital e outra em Barueri. Os policiais envolvidos foram afastados e serão submetidos a inquérito. O Governo de SP não compactua com qualquer tipo de violência.”

    Para Carolina, a polícia dá a justificativa de que o crime está mais grave, o criminoso, mais violento, e que tem chegado mais rapidamente ao local com as ruas vazias. Por isso, pega o crime em curso, com mais chance de ter resistência, troca de tiros e mortes. “Mas não temos clareza do perfil dessas mortes, se a ação foi em legítima defesa, e e cobramos mais transparência”, diz.

    Exposta à violência policial e à ação de milícias e do crime organizado, a população mais vulnerável é quem mais deverá sentir os efeitos da pandemia. O jurista Wálter Fanganiello Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e fundador-presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais, diz que o crime organizado se aproveita de situações de pandemia, assim como de guerras. Em uma ponta, emprestam dinheiro e oferecem proteção para pessoas em desespero. Na outra, aproveitam o momento de baixa de preço para adquirir bens e imóveis.

    O jurista cita Federico Cafiero de Raho, procurador nacional antimáfia da Itália, segundo o qual crises são oportunidades para as máfias. “Nascem como agências de serviços e proliferam onde o Estado não está ou chega tarde”, disse o procurador italiano à RAI. Segundo Maierovitch, essa lógica se aplica à realidade brasileira, composta por milícias e facções como Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos, além de bicheiros. “Esse tipo de organização vai atender as pessoas desesperadas com empréstimos. À medida que não têm como pagar, as pessoas vão quitar as dívidas na forma de prestação de serviços ao crime organizado.” O jurista também não descarta a influência do fortalecimento das milícias no quadro político, já nestas eleições para prefeitura e Câmara de Vereadores.

    Muggah diz que a pandemia tende a aumentar a influência política, social e econômica de organizações criminosas como a Máfia, na Itália, e a Yakuza, no Japão, que emergiram mais fortes após a Segunda Guerra. “Os chefe do crime sabem que os sistemas de aplicação da lei e de justiça criminal estão sobrecarregados e que as prisões estão superlotadas na América Latina. Eles sabem que grande escassez econômica está chegando, o que pode aumentar o risco de violência. A questão é se políticos e policiais estão remotamente prontos para o que está por vir.”

    Lima não vê tanto o aumento do poderio econômico dessas organizações, pois se descapitalizaram com a pandemia e, além disso, têm que se armar mais para se preparar para uma possível guerra entre facções, como em 2016 e 2017, que levou a recorde de homicídios. O que observa é aumento do poder político, social e territorial, à medida que oferecem proteção neste momento de insegurança, viabilizam cestas básicas, selecionam quem terá ou não o benefício e administram conflitos entre vizinhos. “Com o recuo de políticas públicas causado pelo aprofundamento da crise econômica, as milícias e facções tendem a ocupar esse lugar”, diz.

    Com isso, Lima diz acreditar na manutenção da ordem devido ao fortalecimento desse “Estado paralelo”, que tende a inibir saques e convulsões sociais mesmo em cenário de piora da economia. “Essas populações já estão sob o domínio do medo e não farão grandes movimentos, a não ser que as milícias ou facções calculem que seja politicamente conveniente. Essas organizações perceberam que é muito caro repetir o que o PCC fez em 2006 [a maior onda de atentados já vista em São Paulo]. Foi caro em vidas e em dinheiro, ousado demais. Como já têm o domínio, elas impõem uma paz, perversa, mas impõem.”

    Outra explicação para a relativa ordem, segundo Kahn, consultor do BID, são políticas como o auxílio emergencial. Já um ponto de atenção, segundo ele, são os presídios, onde as tensões aumentam com a suspensão de visitas e com a diminuição na entrada de cigarro e drogas. “Não é só o problema do vício, cigarro é moeda dentro do sistema prisional. E as drogas, como dizem os agentes penitenciários, ajudam a manter os ânimos contidos”, afirma.

    Na opinião de Lima, a instabilidade hoje é de natureza político-institucional. Sai da esfera do crime, entra na das polícias: qual será o comportamento dos policiais diante de manifestações populares nas ruas? Como vão administrar o crescimento das tensões econômicas, sociais e políticas? Seu receio é que se repita 2013, quando os manifestantes reagiram à violência policial e os protestos se expandiram.

    Cristiano Aguiar de Oliveira, professor da Universidade Federal do Rio Grande que pesquisou a correlação entre crise econômica, criminalidade e violência, vê problemas maiores a médio e longo prazos. Ele se preocupa com a geração de jovens entre 13 a 16 anos. “É nesse momento crítico em que a vida desses jovens bifurca, em que os caminhos são tomados. Já temos a geração ‘nem-nem’, vulnerável à criminalidade. Quem estiver nessa faixa etária sem oportunidades de estudos e trabalho por período recessivo poderá configurar mais uma geração perdida.”

    Para o professor, é difícil sair do crime, e os que não enveredam por esse caminho terão dificuldade de evoluir profissionalmente em ambiente tão hostil. Sem contar aqueles que nem tiveram a oportunidade de mostrar que, sim, havia alguma esperança, como João Pedro.

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