Polícia Militar constatou ‘inconformidades’ em 170 mil cartuchos de elastômero. Munições foram devolvidas a Condor para ‘correções’. Mais de 800 pessoas no país foram feridas nas manifestações. Fotógrafo Sérgio Silva perdeu visão por bala de borracha da PM em ato do MPL em São Paulo. Corporação comprou agora 20 mil sacos com esferas de metal da americana Safariland.
Reportagem publicada pelo G1 (clique para acessar o texto original)
Dez anos após aquele mês de junho de 2013, quando a Polícia Militar (PM) de São Paulo reprimiu violentamente alguns protestos do Movimento Passe Livre (MPL) contra aumento na tarifa dos transportes públicos, a corporação confirmou neste ano que está trocando as balas de borrachas por “bean bags” (‘sacos de feijão’, numa tradução literal do inglês para o português; na prática são esferas de metal dentro de sacos plásticos). Essa última é considerada uma munição menos letal.
A ideia da PM é de que essa nova munição seja usada para conter eventuais distúrbios urbanos em manifestações. Segundo nota divulgada pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), pasta responsável pela Polícia Militar, as “bean bags” causariam menos machucados em quem for atingido por elas. Não foi informado se elas já foram utilizadas, de fato, alguma vez desde então.
“A instituição substituirá gradativamente as munições de elastômero pelas ‘bean bags'”, informa trecho da nota divulgada no mês passado à reportagem pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), pasta responsável pela PM. “Estudos técnicos apontam vantagens no uso das “Ben Bag”, entre eles: são projetadas para dispersão de energia sobre uma área mais ampla, o que ajuda a reduzir o risco de ferimentos graves ou letais; capacidade de minimizar o risco de penetração em tecidos moles, como a pele humana”.
De acordo com a corporação, foram encontradas “inconformidades” em 170 mil cartuchos de elastômeros (nome técnico dado às balas de borracha) da fabricante nacional Condor S/A Indústria Química. Segundo agentes da PM ouvidos pelo g1, entre os problemas estão: falhas durante testes de segurança, precisão e qualidade realizados por eles em 2020. Num dos casos, a trajetória da bala de borracha mudava de direção após o disparo feito pela arma de um policial.
A ação da PM paulista nas manifestações de 2013 foi criticada à época por especialistas em segurança pública. Vídeos e fotos que circularam na imprensa e nas redes sociais mostraram manifestantes, profissionais de comunicação e pedestres, que nem sequer estavam nos atos, feridos por balas de disparadas por policiais militares.
Foram vistas munições atingirem os olhos dessas pessoas, cegando algumas delas. Entre essas vítimas está o fotojornalista Sérgio Silva, que perdeu a visão do olho esquerdo depois de ser atingido por bala de borracha da PM há exatos dez anos, quando cobria manifestação do MPL no Centro da capital paulista (leia mais abaixo).
A alegação da corporação foi de que era preciso reagir à altura à ação dos black blocs (nome dado à tática adotada por pessoas mascaradas, que consiste no ataque às forças de segurança e depredação do patrimônio público e privado como forma de protesto). Mas em 2016, a Justiça paulista chegou a condenar o estado a pagar R$ 8 milhões por danos morais e sociais por causa de violência policial nas manifestações.
Ainda não há comprovação de que as pessoas feridas pela PM de São Paulo durante os protestos de 2013 tenham sido vítimas, por exemplo, de eventuais falhas nas balas de borracha. De todo modo, a intenção da corporação em substituir gradativamente os elastômeros da Condor pelas “bean bags” da empresa Safariland, dos Estados Unidos, já havia sido revelada pelo g1 em 2021.
Naquele momento, o governador do estado era João Doria (PSDB) e a Secretaria da Segurança Pública era comandada pelo general João Camilo Pires de Campos.
E em 2023, mesmo com as mudanças nos comandos do governo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) assumiu, e na pasta da Segurança, com a vinda do capitão Guilherme Muraro Derrite, o estado de São Paulo continua disposto a trocar de vez as balas de borracha por pelos saquinhos com pequenas esferas de metal dentro (leia mais abaixo sobre as características da nova munição da PM).
“Até o momento, a PM adquiriu apenas 20 mil modelos [de ‘bean bags] com investimento de R$ 620 mil”, informa comunicado da SSP.
Apesar disso, a corporação admitiu em nota que também continua usando as conhecidas balas de borracha: “A Polícia Militar informa que utiliza as munições de impacto controlado de elastômero e ‘bean bag’, atualmente”.
Fotógrafo cego e jornalista ferida
“O certo é que qualquer munição utilizada com emprego da força, disparada contra pessoas que não oferecem nenhum risco à vida do policial, provocará danos físicos. Nesta situação, não encontro sentido algum nesta lógica em ‘causar menos danos’. Ao ferir corpos, independente da munição usada, a violação de direitos será cometida da mesma forma. E, ao meu ver, isto é o que deveria ser levado em consideração pela corporação”, disse Sérgio, criticando a decisão da PM em adotar as ‘bean bags’ em substituição às balas de borracha.
O fotógrafo alega ter sido atingido por uma bala de borracha disparada pela PM. Desde então, o profissional busca na Justiça que o Estado o indenize em R$ 1,2 milhão pelo dano moral e físico causado.
Mas as decisões judiciais não têm sido favoráveis a ele. A última vez foi em abril deste ano, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) entendeu que Sérgio assumiu os riscos de seu ofício “ao se colocar entre os manifestantes e a polícia”. Em outras palavras, para a Justiça, ele é o culpado pela sua própria cegueira.
Ainda na mesma noite do dia 13 de junho de 2013, a jornalista Giuliana Vallone, da Folha de S.Paulo, foi atingida por bala de borracha disparada por um PM da tropa de choque enquanto cobria a continuidade da manifestação do MPL na Rua Augusta, no Centro da capital paulista. Ela levou pontos na pálpebra por conta do ferimento, mas voltou a enxergar depois.
Levantamento divulgado em 2014 pela ONG internacional de direitos humanos Artigo 19, que trabalha pela defesa e pela garantia do direito à liberdade de expressão, indicou que 837 pessoas foram feridas no país ao longo de 2013 em meio a manifestações.
De todos os feridos naquele ano, 117 foram jornalistas. Segundo a Artigo 19, oito pessoas foram mortas durante as manifestações no Brasil em 2013. Levantamento do g1, no entanto, cita que foram dez mortos.
Ocorreram 2.608 prisões de suspeitos no país pelas forças de segurança entre 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2013, informa a Artigo 19. Muitas delas ilegais. Desse total, dez detidos foram jornalistas.
Os dados da Artigo 19 foram obtidos por análises de reportagens jornalísticas, informações de movimentos sociais e de entidades ligadas a jornalistas profissionais. Além de balas de borracha, a PM usou também bombas de gás e cassetetes para dispersar pessoas.
Defensoria Pública
Desde 2013 a Defensoria Pública de São Paulo busca nas diversas instâncias da Justiça a proibição do uso de balas de borracha pela PM em manifestações. Em 2014, decisão judicial havia vedado elastômero, nome técnico da bala de borracha, em protestos, mas depois essa decisão foi suspensa pelo Tribunal de Justiça em 2015. Em 2017, a Justiça voltou a autorizar balas de borracha em atos.
Procurada para comentar o assunto, a Defensoria informou recentemente, por meio de sua assessoria de imprensa, que o processo ainda está em andamento e aguarda o julgamento dos recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).
“O pedido é para que haja atuação da Polícia Militar que priorize o diálogo à violência e que, em casos de necessidade incontornável de uso da força, que o faça de forma progressiva. Assim, para além da reparação pelas violações cometidas pelo Estado, pretende-se também a condenação do Estado em obrigações de fazer e não fazer que aperfeiçoem o trabalho policial em contexto de manifestações públicas”, informa trecho da nota da Defensoria.
Ainda de acordo com a Defensoria, o órgão não sabe precisar o número de pedidos de indenizações que ajuizou contra o Estado. São ações em favor das vítimas da violência policial durante as manifestações que começaram em 2013 e seguiram nos anos anteriores.
Um dos casos é o da estudante Déborah Fabri, que perdeu a visão de um dos olhos em 2016 durante manifestação em São Paulo. O TJ-SP condenou o governo paulista a pagar R$ 130 mil de indenização para ela.
“Nessa denúncia, encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela Defensoria e pela ONG Artigo 19, em 2019, solicitou-se que o Brasil adequasse sua conduta em manifestações aos padrões internacionais, com a criação de uma legislação federal com diretrizes básicas, incluindo mecanismos para responsabilização dos agentes violadores de direitos humanos. Além disso, o processo de reparação civil está em andamento no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Houve sentença condenatória em primeira instância, porém o Estado recorreu”, informa trecho do comunicado.
“Os testes realizados durante o processo de aquisição demonstraram inconformidades também em parte dos itens. A parte aprovada foi distribuída às unidades policiais e a outra parte, devolvida. Foi pago apenas o valor referente às munições aprovadas. Como o valor total do contrato é de cerca de R$ 21 mil, a PM abriu um processo sancionatório contra a empresa”, informa nota da pasta da Segurança.
De acordo com a PM já foi elaborado um novo protocolo de uso para esse tipo de munição. Essa é a primeira vez em sua história que a Polícia Militar usa “bean bag”. O produto já é utilizado nos Estados Unidos e também chegou a ser usado na Colômbia, no México, no Canadá, na Hungria, em Hong Kong, entre outros países.
Procurada pelo g1 para comentar o assunto, a Condor informou também por meio de um comunicado que os testes citados pela SSP “não foram realizados com equipamentos de medição adequados, resultando em condições técnicas não ideais”. A empresa alega que num novo teste, este feito pelo Exército, foi comprovado que as balas de borracha e granadas estão funcionando normalmente.
Ainda em nota enviada à reportagem, a Condor sustenta que a Precision, nome da bala de borracha que produz, é uma munição de impacto controlado que permite “alta precisão no disparo, o que não acontece com as munições ‘bean bags””.
O que dizem especialistas em segurança
Segundo Bruno Langeani, diretor da área de Sistema de Justiça e Segurança do Instituto Sou da Paz, que tem estudos sobre armas e munições usadas por policiais, o elastômero e a munição química são excessivamente usados em manifestações públicas para restringir um direito constitucional a protestos.
“Seu uso traz alto risco de lesões graves. Podendo gerar cegueira, como já aconteceu em outras ações da PM”, disse Bruno, em entrevista ao g1 em 2021.
“Apesar de ‘bean bag’ ter menos chance de penetração no corpo, seu uso errôneo e em curtas distâncias também podem gerar graves lesões”, disse Bruno. “Assim como no caso do elastômero [onde há registros de lesões graves e até morte], também o uso de ‘bean bag’ não é inofensivo e já gerou mortes, como no caso do manifestante colombiano Dilan Cruz em 2019.”
Davi Quintanilha, defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, falou há dois anos que o órgão também é contra o uso de balas de borracha pela PM em manifestações.
“Temos muitos casos de pessoas que ficaram cegas ou tiveram ferimentos graves depois de serem atingidas por esse tipo de munição”, disse Davi. “A bala de borracha em tese tem isso de atingir uma pessoa determinada e por isso não deveria ser usada a torto e a direito para dispersar pessoas. Os danos colaterais possíveis e, muitas vezes, previsíveis, são muito graves para justificar seu uso contra uma multidão.”
Segundo o defensor, a informação de policiais de que testes demonstravam desvio de trajetória no disparo de balas de borracha é preocupante. “Esse dado do desvio da trajetória da bala de borracha é muito grave e torna ainda mais questionável o uso dessa munição, principalmente em contexto de manifestações”, disse Davi.