Folha obteve dados dos últimos cinco anos via Lei de Acesso à Informação; proporção de equipamentos mais perigosos roubados ou furtados cresce
Reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo (clique para acessar o texto original)
O empresário Geraldo Luiz Pion, 62, de Pirassununga (a 211 km de São Paulo), foi rendido logo ao entrar em casa, na noite de 23 de dezembro de 2020. Mesmo estando armado, ele não conseguiu reagir porque três criminosos o aguardavam do lado com armas em punho e com a mulher dele refém.
Dono de um clube de tiro, o Dólar Furado, vizinho à casa dele, Pion levou coronhadas na cabeça e um tiro de raspão entre os dedos da mão direita em meio a ameaças de morte para que entregasse um conjunto de 12 armas, entre pistolas, espingardas e fuzis, que criminosos sabiam existir ali.
As armas do empresário de Pirassununga estão entre as 5.978 levadas por criminosos nos últimos cinco anos no estado de São Paulo, entre junho de 2017 e maio de 2022, que estavam em ambientes residenciais, segundos dados da Secretaria da Segurança Pública, obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação.
Esse armamento roubado ou furtado em apartamentos e casas (incluindo rurais) representa quase metade (49,9%) do total levado por criminosos nesse período: 11.985 armas. O restante foi subtraído de locais como estabelecimentos comerciais (25,5%), de veículos em via pública (16,8%) e órgãos públicos (5,8%).
Os dados obtidos mostram, ainda, que Pirassununga foi um dos 276 municípios em que foram registradas pela Polícia Civil ocorrências de armas sendo levadas por criminosos. Isso significa 43% dos 645 municípios paulistas, mais um indicativo da proliferação das armas pelo país.
Pion foi vítima de roubo, crime cometido com violência ou grave ameaça. Segundo os registros policiais, 38,5% das armas foram levadas dessa forma violenta. O restante (61,5%) foi levado por meio de furto, quando não há violência. Nesses casos, a vítima, geralmente, só percebe o crime depois.
Caso do advogado Marcio, 61, que, em agosto de 2018, teve a casa em Perdizes, zona oeste da capital paulista, invadida por três criminosos quando ele estava fora com a família. A reportagem não conseguiu contato com ele e, por isso, optou por não divulgar o sobrenome.PUBLICIDADE
Com a ajuda de câmeras de segurança, ele soube que os homens tinham arrombado uma porta lateral e, no interior da residência, levaram bens como joias, relógios de marcas famosas e dez armas pertencentes a ele –entre pistolas, carabinas e uma submetralhadora.
Conforme contou aos policiais, o armamento estava guardado no interior de dois cofres, presos à parede, mas, mesmo assim, os ladrões conseguiram arrancá-los e carregá-los para dentro de um carro da família, usado na fuga.
Conforme registro policial, uma das armas (uma pistola .40) foi localizada cerca de dois anos depois e devolvida ao advogado.
Os números obtidos pela Folha indicam, ainda, que das armas levadas pelos criminosos nesse período de cinco anos no estado, mais da metade (50,2%) eram revólveres e outros 30% eram pistolas. Essa proporção vem caindo, porém, ao longo do tempo, conforme dados da polícia.
Em 2022, por exemplo, dados parciais de janeiro a maio, a quantidade de revólveres levados caiu para 40%, enquanto a proporção de pistolas subiu para 39%. Em 2017, essa diferença era de 57% de revólveres, contra 25% das pistolas –essas têm maior capacidade de armazenamento de munição.
De acordo com Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto do Sou da Paz, os dados obtidos pela Folha reforçam as conclusões de levantamento da entidade com informações 2011 a 2020. O estudo apontou que 46% das armas levadas por criminosos estavam em ambientes residenciais.
“A tendência é parecida, mas teve aumento na participação de residências. É um aumento já era esperado, algo que o Sou da Paz está dizendo desde 2019 sobre a flexibilização, especialmente do registro, que ela faria com que essa massa de armas legais armazenada em residência crescesse e, por consequência, os desvios também”, afirmou o pesquisador.
De acordo com informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas com licenças para aquisição de armas de fogo disparou no governo Bolsonaro e houve aumento de 473% em quatro anos, conforme dados do Sinarm (Sistema Nacional de Armas), vinculado à Polícia Federal, e do Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), do Exército.
Em 2018, antes de o presidente assumir, havia 117,4 mil registros ativos para caçadores, atiradores e colecionadores, os chamados CACs. Em junho deste ano, esse número chegou a 673,8 mil, a maior quantidade de registro da série histórica iniciada em 2005.
De acordo com decreto assinado pelo presidente em 2021, os CACs podem comprar até 60 armas, sendo 30 de uso restrito, como fuzis, e até 180 mil balas ao ano.
A pesquisa do Sou Paz também indicou a mesma proporção de furtos (6 a cada 10 crimes) entre 2011 e 2020. Além disso, a maioria das ocorrências residenciais era de apenas uma arma levada por ação, assim como mostram os dados obtidos pela Folha.
Langeani diz que é preciso analisar esses dados para tentar montar estratégias para evitar o desvio de armas. “A polícia deveria estar fazendo uma análise sobre isso, mas, na prática, a gente sabe que não faz. Uma análise sobre isso indicaria onde precisaria apertar a fiscalização”, afirma o pesquisador.
Para o delegado Fábio Pinheiro Lopes, diretor do Deic (departamento de combate ao crime organizado), há uma demonização da aquisição de armas. Ele disse ser contra as pessoas andarem armadas pelas ruas, mas é a favor de elas terem armamento dentro de casa para se defenderem de invasões criminosas.
“Sou favorável a todo cidadão de bem ter arma dentro de casa, legalizada, com registro. Agora, portar na rua, só algumas pessoas porque a pessoa precisa ser capacitada e ter maturidade, para portar arma na rua”, afirma o policial, integrante da cúpula da Polícia Civil de SP.
Conforme a Folha mostrou, embora ainda continue mais difícil para o cidadão comum conseguir uma autorização, a sequência de normas no governo Bolsonaro sobre armamentos acabou criando uma espécie de porte automático para CACs, que podem transportar uma arma carregada no trajeto entre a casa e um clube de tiro, percurso difícil de fiscalização.
Procurado pela reportagem, o empresário Geraldo Luiz Pion, de Pirassununga, não quis falar sobre o roubo sofrido por ele há quase dois anos.