Por Raquel Lopes (acesse a matéria original publicada pelo jornal Folha de S. Paulo)
Investigação aponta homem se registrou como CAC e que não foi exigida certidão da Justiça que mostraria antecedentes criminais
Um membro da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) conseguiu obter o certificado de registro de CAC (caçador, atirador e colecionador) no Exército Brasileiro mesmo tendo uma ficha corrida com 16 processos criminais, incluindo cinco indiciamentos por crimes como homicídio qualificado e tráfico de drogas.
O registro foi obtido em junho de 2021, já na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL). O governo federal, por meio de novas portarias e decretos, tem flexibilizado o acesso a armas e munições no país. Algumas normas publicadas são destinadas a beneficiar especialmente a categoria dos CACs.
Após receber o registro de atirador, o homem comprou duas carabinas, um fuzil, duas pistolas, uma espingarda e um revólver. O valor das armas supera R$ 60 mil.
Segundo a polícia, para obter o certificado de registro de CAC no Exército ele apresentou somente a certidão negativa de antecedentes criminais na 2ª instância, emitida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
A investigação aponta que o Exército não exigiu certidão negativa da Justiça de primeira instância, na qual o membro do PCC tem 16 processos. Caso ele tivesse expedido o documento em primeira instância, como determina a legislação, sua ficha criminal seria exposta.
A Polícia Federal em Uberaba (MG) apreendeu as armas na quinta-feira (14), após cumprir três mandados de busca e apreensão na operação Ludíbrio.
O Exército foi procurado, mas não respondeu.
Para se tornar CAC, o Exército pede a comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral.
As armas compradas por CACs ficam registradas no Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas). Como a Folha mostrou, o Exército admitiu ser incapaz de produzir relatórios detalhados sobre os tipos de armas atualmente nas mãos do grupo.
O apagão de informações ocorre pela falta de padronização de campos do sistema. Dessa forma, a Força não sabe dizer com precisão quais são os diferentes tipos de armas e calibres que compõem o acervo.
Atualmente, cerca de 1,5 milhão de armas estão registradas no Sigma. Os CACs respondem por mais da metade desse acervo (pouco mais de 884 mil), sendo que o restante é formado pelo armamento particular de militares, incluindo policiais e bombeiros.
O registro obtido pelo membro do PCC preocupa especialistas porque expõe as fragilidades da área de controle do Exército.
Segundo Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, as fragilidades da checagem de documentação e concessão de licenças de produtos controlados são conhecidas há tempos, e apontadas pelo TCU (Tribunal de Contas da União) em auditoria de 2016.
“As falhas já faziam com que membros do crime organizado se aproveitassem das brechas, como por exemplo o matador de aluguel e traficante de armas Ronnie Lessa e esposa, que eram CACs, e o armeiro do PCC Levi Adriani Felicio, com registro de CAC até 2017”, disse.
“Sem corrigir estas falhas e agora com vários novos privilégios, como a possibilidade de portar armas, comprar até 30 fuzis e operar fábricas caseiras de munição em casa, o incentivo para o crime organizado cresceu muito. Assim, temos visto toda semana casos de CACs envolvidos em crime ou em facilitação do crime organizado”, completou.
Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, disse que a existência de antecedentes criminais, principalmente para crimes violentos, deveria impedir que a pessoa tivesse acesso a arma de fogo.
Marques acrescenta que, mais uma vez, se comprovam falhas graves nas políticas de incentivo ao armamento civil.
“Muitos dos novos CACs vêm em conjunto com a criminalidade, mostrando mais uma vez que o mercado legal começa a abastecer o mercado ilegal de forma direta. Hoje, dada a facilidade de acesso a armas de fogo, via Exército ou Polícia Federal, o cidadão mal-intencionado vai direto à loja comprar a arma, coisa que não acontecia”, disse.
Com o suspeito, foi apreendido também um veículo de luxo Jaguar avaliado em R$ 230 mil. O carro está registrado em nome da mãe do membro do PCC, que não tem vínculo empregatício ou renda para obter esse bem. Segundo a Polícia Federal, ela atuava como laranja.
Em uma das empresas do integrante da facção foram encontradas grandes quantidades de bebidas alcoólicas sem notas fiscais. A Receita Estadual foi acionada para verificação das procedências da mercadoria.
A PF disse que o membro do PCC poderá ser indiciado pelos crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso, entre outros crimes que forem descobertos até o final da investigação.
Segundo a PF, o homem possui laços com a facção, mas não deu mais detalhes. Ele não está preso.