Por Raquel Lopes (leia a matéria original publicada pelo jornal Folha de S. Paulo)
A venda de munições para CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) dobrou em 2021, chegando a 61,3 milhões de unidades contra 28,5 milhões em 2020.
Os CACs têm sido beneficiados com uma série de normas no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), o que tem influenciado o crescimento de armas e munições nas mãos dessa categoria.
O atirador desportivo, por exemplo, antes dos decretos era dividido em três níveis. O maior nível, aquele que participa de campeonatos nacionais, poderia comprar até 16 armas e 40 mil munições ao ano.
Com as mudanças, não há mais a divisão por nível e qualquer um pode comprar até 60 armas, podendo chegar a adquirir 180 mil munições anualmente.
Todo esse crescimento ocorre em paralelo a atos e discursos de Bolsonaro desde a campanha de 2018. O presidente, sua família e vários de seus apoiadores são ferrenhos defensores do armamento da população.
Na sua gestão, Bolsonaro estimulou o cidadão comum a se armar. Inclusive, deu acesso à população a calibres mais poderosos.
Em agosto do ano passado, no momento em que enfrentava uma crise institucional, Bolsonaro disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada que defendia que todos pudessem ter um fuzil. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado.”
O governo já publicou 15 decretos presidenciais, 19 portarias, dois projetos de lei e duas resoluções que flexibilizam regras.
As medidas adotadas por seu governo ampliam o acesso da população a armas e munições e, por outro lado, enfraquecem os mecanismos de controle e fiscalização de artigos bélicos. Uma delas revogou três normas que melhoravam o rastreamento de armas e munições no país.
Como a Folha mostrou, os CACs têm participação ativa no governo Bolsonaro. Antes da publicação de quatro decretos, o processo de consulta nos bastidores aos CACs demorou ao menos 11 meses. Eles foram os únicos ouvidos sobre as normas que regulam a compra de armamento e munição por agentes de segurança e CACs.
Em 2021 a venda de munições para CACs pela primeira vez ultrapassou a venda para uso institucional, que chegou a 54,7 milhões. O crescimento dessa categoria, que envolve as forças policiais e as Forças Armadas, foi de 5% de 2020 para 2021.
Os dados inéditos do Exército Brasileiro foram obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação) pelo Instituto Sou da Paz. Eles mostram a evolução da venda de munições desde 2018.
Houve também aumento do número de registros e do arsenal bélico na mão dessa categoria. No total, há 795 mil armas registradas de CACs e 492 mil pessoas com registro ativo de CAC no Exército Brasileiro até novembro de 2021.
Com a justificativa de dar segurança jurídica à categoria, o PL 3.723/2019, do governo federal, pode beneficiar ainda mais esse público. Ele está sob a relatoria do senador Marcos do Val (Podemos-ES), que também é CAC, e ainda será votado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado.
Conhecido como “PL da Bala Solta”, o projeto altera pontos importantes da legislação sobre controle de armas e munições no país.
Um ponto do projeto prevê que os atiradores e caçadores transportem uma arma curta municiada e pronta para uso, em qualquer horário e trajeto para o local da prática de tiro. A autorização já consta em decreto publicado no governo Bolsonaro em 2019, mas a intenção é dar status de lei para esse ponto.
“Você pode morar na zona Sul e ter um clube na zona Norte e a qualquer horário, inclusive às 3h da manhã, alegar que está indo ao clube. Isso faz com que muitas pessoas que queiram ter o porte de arma, seja para defesa pessoal ou outros motivos, busquem essas categorias”, disse Natália Pollachi, Gerente de Projetos do Instituto Sou da Paz.
Outro ponto assegura que os atiradores possam ter no mínimo 16 armas de calibre permitido ou restrito. O projeto, entretanto, não coloca limite máximo de armas que podem ser adquiridas, podendo ficar a critério de decretos publicados pelo governo federal. Atualmente, esse grupo pode adquirir até 60 armas.
Pollachi acrescenta que, ao mesmo tempo que flexibiliza as normas, o projeto impõe mais dificuldade de fiscalização. Como mostrou uma reportagem da Folha, os policiais hoje não conseguem ter acesso ao banco de dados do Exército por falta de integração dos sistemas.
Dessa forma, eles precisam enviar ofício para conseguir informações sobre armas utilizadas por CACs, por exemplo. O PL diz que para ter acesso aos bancos de dados que contenham informação de acervo de CACs, o servidor credenciado terá que apresentar um pedido formal justificando os motivos.
Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé, disse que os CACs têm sido os mais beneficiados com essas flexibilizações.
“As munições dessas categorias não são marcadas, como as de uso das forças de segurança, e o projeto não avançou nisso. Quando flexibiliza e não melhora a fiscalização, os desvios do mercado legal para o ilegal são facilitados, por exemplo”, destacou.
Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acrescenta que a marcação de munição para uso institucional é algo admirado pelo resto do mundo. Isso ajuda com que as munições sejam menos desviadas e, quando isso ocorrer, é possível saber qual a origem.
Em janeiro, por exemplo, foi apreendido um arsenal do Comando Vermelho na casa de uma pessoa que tinha registro de CAC emitido pelo Exército —65 armas que abasteciam diversas favelas do Rio, entre elas 26 fuzis, todas legalmente adquiridas.
O senador Marcos do Val defendeu o projeto e disse, por nota, que o PL 3723/2019, regulamenta a posse e o porte de armas para os CACs, visando a segurança jurídica da categoria.
“O PL restringe o número de armas, prevê o rastreio das munições utilizadas e uma série de outras medidas que regulamentam a atividade. Como relator, sempre tratei o tema com a devida responsabilidade, ouvindo e acatando diversas emendas de outros senadores.”
Além dos CACs, Marques destacou que o governo facilitou o acesso da população a armas e munições e deu acesso a calibres que antes eram permitidos só a policiais e às Forças Armadas.
“Uma arma com calibre 9mm, por exemplo, era de uso somente das Forças Armadas e, atualmente, o cidadão comum pode ter acesso a esse tipo de arma. Quando amplia esse uso para o cidadão comum aumenta também o universo de linhas de investigação e dificulta a resolução de crimes”, disse.
Ailton Patriota, coordenador técnico da CBTE (Confederação Brasileira de Tiro Esportivo), é favorável à flexibilização das normas sobre armas a atiradores desportivos, sobretudo ao aumento do número de equipamentos que podem ser adquiridos pelos CACs.
“Alguns atletas competem em várias modalidades e precisam de armas diferentes. Não acho que a quantidade de armas em circulação aumentaria a violência. O controle dessas armas é muito rígido”, afirmou.
No entanto, ele diz discordar da permissão de transportar equipamentos prontos para uso, em qualquer horário e trajeto, para o local da prática de tiro.
“Se é um atleta, por que precisa andar armado?”, indagou Patriota. “O que me preocupa é o aumento na quantidade de CACs, sem o aumento expressivo no número de atletas. É preciso uma cobrança maior.”
O Exército foi procurado, mas não se manifestou.
Colaborou Nathalia Garcia, de Brasília