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    Folha de S. Paulo | Decretos de flexibilização de armas tiveram tramitação expressa de 32 horas

    4 de abril de 2021 às 02:13

    Normas que regulam compra de armamento e munição tiveram 11 meses de consultas entre atiradores

    Por Raquel Lopes (leia a matéria completa publicada pelo jornal Folha de S. Paulo)

    Da análise formal pelos órgãos federais até a publicação na véspera do Carnaval, os quatro decretos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre armas e munições passaram por uma tramitação expressa de apenas 32 horas. O processo de consulta nos bastidores aos CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores), entretanto, demorou ao menos 11 meses antes da elaboração dos textos.

    As novas normas regulam a compra de armamento e munição por agentes de segurança e CACs. Também flexibilizam o acesso e aumentam o limite para aquisição de armamentos e munições no país.

    Para especialistas em segurança pública, chamam a atenção a velocidade da tramitação no Executivo e a forma como foi feita a elaboração das mudanças nos bastidores até que os decretos fossem publicados. Os CACs foram os únicos a serem ouvidos, e as normas trazem diversos benefícios para o grupo e riscos à sociedade, avaliam esses especialistas.

    Pessoa segura um cartaz com a frase "Armas para o cidadão de bem" e uma bandeira do Brasil em frente a uma faixa que diz "Não é por armas nem por Bolsonaro. É por liberdade". Ao fundo, a Catedral Metropolitana de Brasília
    Protesto pró-armas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília – Pedro Ladeira – 9.jul.20/Folhapress

    A Folha teve acesso aos 27 documentos que mostram a tramitação formal do processo.

    Desde o envio do processo pelo Ministério da Defesa a outras instâncias até a assinatura de ministros, foram quase 26 horas, tendo início às 12h10 do dia 11 de fevereiro e terminando no dia seguinte, às 14h04. Se forem incluídos os prazos de publicação dos decretos, foram 32 horas.

    Nas oito primeiras minutas de proposta de decretos, o chefe de gabinete do ministro da Defesa, Claudio Senko Penkal, pedia ao Comando do Exército e à consultoria jurídica da pasta que os pareceres fossem realizados “com a maior brevidade possível”. Todos tinham a classificação de “urgentíssimos”.

    A tramitação ficou entre o Ministério da Defesa e o comando logístico do Exército, contando com as áreas técnicas e jurídicas desses órgãos. A proposta de alteração dos decretos encaminhada ao presidente Jair Bolsonaro contém a assinatura do então ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça. Os documentos foram obtidos pelo deputado federal Ivan Valente (Psol-SP).

    O Ministério da Defesa disse, em nota, que a formalização oficial ocorreu em prazo curto porque durante o processo de construção dos textos dos decretos, as análises formais já estavam sendo adiantadas e rascunhadas pelos órgãos técnicos e jurídicos.

    “A dinâmica de trabalho de elaboração das normas permite sua análise técnica e jurídica em tempo adequado, como ocorre em diversos outros casos de elaboração normativa e legislativa.”

    Afirmou ainda que a tarefa durou mais de um mês e foi um trabalho em conjunto do Ministério da Defesa, Ministério da Justiça e Segurança Pública e da Secretaria-Geral da Presidência da República.

    Apesar dessa celeridade e da ausência de consulta pública formalizada, uma live do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) com o advogado e atirador Marcos Pollon para falar das alterações dos decretos, no dia 13 de fevereiro, mostra que a escuta aos CACs demorou ao menos 11 meses.

    Na conversa, eles relatam que o responsável por esse diálogo foi o coronel da reserva e atirador desportista Valdir Campoi Junior, que trabalha na Secretaria-Geral da Presidência na construção de decretos para flexibilizar armas e munições. No dia 22 de fevereiro, ele foi nomeado para o CNPCT (Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura).

    “Isso começou a ser trabalhado há quase um ano, praticamente 11 meses, quando Campoi começou a juntar as demandas de todo o setor, atiradores, federações, clubes. Desde então, foi maturando, maturando, juntou toda a demanda e fez a estrutura”, disse Pollon.

    Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, diz que a escuta a esse grupo pode ser vista como um problema porque não houve uma consulta pública para conversar com outros grupos da sociedade. Além disso, as conversas com os CACs não foram formalizadas.

    Ela afirma que os CACs tiveram benefícios com a publicação dos decretos. Eles passaram a poder, por exemplo, portar as suas armas municiadas independente do trajeto. O que significa, na prática, a autorização de porte. Antes, o trajeto era bem definido e a arma só podia ser portada entre a casa e o clube de tiro onde o praticante fosse treinar.

    “O que não me parece correto é que os interesses de um grupo específico pautem a produção de uma norma que vai ter impacto em toda a sociedade, isso não foi feito de forma clara. Todo ato público tem o princípio da transparência, formalidade e precisa ser registrado.”

    Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé, disse que é importante ouvir outros atores da sociedade civil, porque existem pessoas que estudam o tema e, baseadas em evidências científicas, poderiam contribuir.

    Outro problema apontado por Risso é que a tramitação formal não mostra consulta à Polícia Federal e à Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), que têm entre suas responsabilidades a implementação e o acompanhamento da política nacional de segurança pública.

    “É importante ouvir outros atores porque esses decretos interferiram diretamente na sociedade. Eles reduzem a capacidade de fiscalização, aumentam a quantidade de munições a serem adquiridas, autoriza que a pessoa possa portar mais de uma arma ao mesmo tempo e ainda retira alguns produtos da lista de controlados pelo Exército.”

    O advogado, analista de segurança pública e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Ivan Marques, disse que o tempo de análise dos decretos varia, podendo levar poucos dias ou até meses, dependendo da complexidade do assunto e quantos órgãos estão envolvidos.

    Ele avalia que em 32 horas não há tempo suficiente para que ocorra a cooperação entre os ministérios tendo em vista que são decretos que alteram de maneira profunda a política nacional de armas. Marques acrescenta que essa velocidade impactou até mesmo na análise.

    Durante a tramitação dos decretos, a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército emitiu uma nota técnica em que pedia um prazo superior a 180 dias para analisar o impacto que esses novos normativos trariam.

    A análise seria feita em paralelo com os prazos previstos para o decreto entrar em vigor. No entanto, os decretos foram acelerados e passaram a valer 60 dias após a data em que foram publicados.

    “Se o servidor que tem a responsabilidade técnica e jurídica para dar seu parecer pede prazo para análise e não é atendido, essa medida deixa de ser técnica e passa a ser estritamente política. A responsabilidade do impacto de suas consequências no mundo real é toda do tomador da decisão. É de praxe que se dê um prazo razoável para que se faça análise tanto jurídica quanto das consequências que essas normas podem trazer aos brasileiros”, avalia Marques

    Na prática, foi analisado apenas um dos quatro decretos que foram publicados, o que atualiza a lista de produtos controlados pelo Comando do Exército. Além disso, a nota técnica mostra que o Exército é liberado de vários ônus, mas não explica quem ficará com tais responsabilidades.

    “É uma análise que olhou apenas parte dos decretos, foi muito parcial”, concluiu Carolina.

    O Ministério da Justiça e Segurança Pública disse, em nota, que por meio de representantes da Senasp e da Polícia Federal, participou de diversas reuniões interministeriais com o objetivo de redigir propostas para aprimoramento dos decretos citados.

    O Ministério da Defesa afirmou, também em nota, que o parecer da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados foi suficiente e adequado para assessorar o processo decisório de edição de decretos. A pasta acrescentou que eventual consulta a interessados ou de consolidação de demandas não foi realizada pela pasta.

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