Estudo do Instituto Sou da Paz evidencia o papel da violência armada na desigualdade racial brasileira
Por Fernanda Mena e Priscila Camazano (acesse o texto original publicado pelo jornal Folha de S. Paulo)
“Parem de nos matar.” A frase tem sido usada para denunciar as altas taxas de mortes violentas da população negra no país. Na faixa entre 15 a 29 anos, a que mais concentra este tipo de vítima, a proporção de mortes por armas de fogo é três vezes maior entre negros do que no restante da população.
A demanda, proferida por quem já está cansado de ver os seus iguais morrerem, não é nova. Em 1978, o dramaturgo e político Abdias Nascimento (1914-2011) já denunciava essa vitimização desproporcional no livro “O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado” (ed. Perspectiva).
Mais de 40 anos depois, levantamento inédito feito pelo Instituto Sou da Paz (ISP) mostra que esse cenário desigual não mudou. Em 2019, 78% das vítimas fatais por agressão com arma de fogo eram pessoas negras, que compõem 56% da população, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
O relatório, feito a partir dos dados dos sistemas de notificação de violência do Ministério da Saúde, aponta também que crianças e adolescentes negras de até 14 anos morrem 3,6 vezes mais por conta da violência armada do que as não negras.
Entre crianças negras de até 14 anos vítimas de morte violenta, 61% foram assassinadas com armas de fogo. No caso de crianças brancas, esse percentual é de 31%.
De 2012 a 2019, 3.288 crianças (de até 14 anos) e 148.241 jovens (de 15 a 29 anos) negros foram vítimas de agressões letais por arma de fogo —número cinco vezes maior que o total de civis mortos nos conflitos no Afeganistão (27.179) no mesmo período, segundo a ONU.
Esses dados servem como argumento para o movimento negro atual manter e amplificar as denúncias feitas por Abdias.
“É um uso político do conceito de genocídio, que é apropriado para ilustrar um processo gravíssimo que atinge uma população específica e que é negligenciado pelo Estado, que não faz nada para evitar essas mortes”, avalia Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz.
Segundo Felipe Freitas, pesquisador do Núcleo de Justiça Racial da FGV, o cenário não mudou de Abdias até os dias de hoje porque as escolhas políticas “não apontaram com a força necessária para a mudança”.
Para ele, os dados só confirmam a persistência do racismo em organizar as relações de poder na sociedade. “[As taxas] não se alteram e em algum sentido se agravam porque as escolhas políticas feitas ao longo dos anos aprofundaram a desigualdade racial. Escolhas que expressam ações e omissões e celebram novos contratos do Brasil com o racismo, atualizando a manutenção dessa realidade”, afirma ele.
De acordo com o relatório, a taxa de pessoas negras mortas por arma de fogo é três vezes maior que a de pessoas não negras, uma desproporção que se mantém ao longo dos últimos oito anos. No Nordeste, essa diferença sobe para quatro vezes.
Para Cecília Olliveira, diretora-executiva do Instituto Fogo Cruzado, os dados revelam que a desigualdade que estrutura a sociedade brasileira se reflete ainda mais explicitamente no perfil dos mortos no país, inclusive crianças.
“Isso é resultado de uma série de decisões políticas que vão desde a falta de indicadores de raça em muitas estatísticas, passando pela falida guerra às drogas e pelo desdém pela segurança, que é tratada em palanques, em geral desconsiderando diagnósticos, estudos e dados”, afirma ela.
O Brasil vive um aumento do acesso às armas de fogo desde que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) editou decretos que flexibilizaram a posse e o controle de armas, a partir de janeiro de 2019. Os efeitos foram imediatos. Em 2019 e 2020, foram registradas pela Polícia Federal, em média, 387 armas por dia no país.
Com isso, em dezembro de 2020, o Brasil chegou à marca de 2.077.126 armas legais particulares, ou 1 para cada 100 brasileiros, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Para Carolina Ricardo, diretora-executiva do Sou da Paz, essa flexibilização do acesso às armas tem potencial para impactar a população negra. “Tem uma dimensão racial importante da flexibilização porque a gente sabe, a partir de diversos estudos, que o aumento na circulação de armas tende a impactar no aumento da violência letal por arma de fogo”, afirma.
Freitas concorda que o descontrole das armas de fogo é decisivo para o incremento de todas as modalidades de violência armada. “O mundo inteiro tem apostado no controle do comércio, da produção e da circulação de armas como estratégia fundamental para conter a violência letal. No entanto, o Brasil aponta na contramão do mundo e por isso colhe os resultados dramáticos”, afirma
Em 2020, o general que editou decretos sobre rastreabilidade de armas e munições para aumentar o controle sobre sua circulação foi exonerado, e os decretos foram derrubados pelo presidente Bolsonaro.
Para Carolina, a persistência da vitimização desproporcional das pessoas negras, apresentada pelo relatório, aponta para a vulnerabilidade e falta de acesso a direitos impostos historicamente a essa população e expressos em dados como escolaridade das vítimas (menor entre negro) e local onde ocorreram as mortes. Em 2019, pessoas negras morreram majoritariamente na rua (54%). Entre não negras, a proporção foi de 48%.
Outros dados indicativos do chamado racismo estrutural são mais sutis, como a ausência de informação do local de morte de crianças negras ser maior (28%) do que de crianças não negras (18%).
Para Cecília, do Instituto Fogo Cruzado, “enquanto não levarmos a sério esses números do racismo, a violência contra a população negra vai continuar”. “E isso só é possível porque as vítimas têm majoritariamente o perfil dos “não cidadãos”. O resultado só pode ser o já histórico genocídio da população negra.”