São ditaduras, não democracias, onde líderes sentem prazer na morte
Por Thiago Amparo (leia a coluna de opinião publicada na Folha de S. Paulo)
Premissa: e se o Presidente da República não somente ignora mortes, mas nelas sente prazer? Suponhamos, por um segundo, que estejamos sendo governados por um presidente clinicamente sádico com traços de sociopatia. Aceita a premissa, pergunto, em seguida: sociopatia dá impeachment? Se ocultar dados em uma pandemia em ascensão ou armar a população num país com taxas endêmicas de violência armada não forem atos sádicos, não sei o que mais eles seriam.
Presidente, 22 de abril de 2020: “É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado.” Irônico vindo de um governo que entende escravidão como benéfica, vide Sergio Camargo. “Estou armando o povo porque não quero uma ditadura.” Irônico, novamente, vindo de um governo que celebra a ditadura, vide Ustra. No último dia 5, o presidente ligou os pontos: “[isentar importação de armas de impostos] é uma boa medida que vai ajudar a todo o pessoal dos Artigo 142 e 144 da nossa Constituição”. Qual outra interpretação os juristas saudosos de 1964 nos venderão desta vez para dizer que esta frase não passa de uma platitude?
Veja o que muda com decretos de posse e porte de armas
O sujeito da frase, o tal “pessoal”, sequer é um sujeito oculto. São os policiais que esmagam protestos pró-democracia ou elevam letalidade policial em meio a uma pandemia, são os cidadãos de bem que fizeram feminicídios e mortes no campo aumentarem exponencialmente desde 2019. “Homens puros, grandes e verdadeiramente políticos não são os que obedecem à lei, mas o que se antecipam a ela”, escreveu ironicamente Machado de Assis em uma crônica de jornal em 1888. Antecipados, os sujeitos ocultos do bolsonarismo armado já aterrorizam.
E aqui mora o perigo maior. Se Bolsonaro fosse apenas um sádico a espumar solitário no Palácio do Planalto, até que as instituições resistiriam. Não é o caso. Em desarmamento, Bolsonaro tem sido extremamente eficaz. O governo ampliou o acesso a armas de fogo antes de uso restrito, reduziu o controle sobre compra de armas pelas forças de segurança, e expandiu porte de arma de fogo por guardas municipais, conforme Instituto Igarapé e Instituto Sou da Paz.
A tática tem sido bem-sucedida, se violência for o objetivo deste governo. Revogar normas de rastreamento e identificação de armas, como fez Bolsonaro em abril, somente beneficia milícia e crime organizado. O jornal O Globo mostrou que a compra de munição por cidadãos com direito a porte ou posse aumentou em 98% entre janeiro e maio deste ano. É urgente fortalecer rastreamento de armas ilegais por meio da marcação universal de munições, monitorar melhor armas via sistemas da PF e do Exército, e manter a restrição ao porte civil e requisitos de compra pra evitar que armas cheguem às mãos erradas.
Bolsonaro postou nas redes sociais, em abril, um vídeo no qual aparece em um clube de tiro, ao lado de um alvo, comentando a própria pontaria. “Dez tiros, o pior foi oito, tá bom, né?”, disse, referindo-se à própria pontuação
Bolsonaro reproduz retórica da extrema direita de que democracias dependem de população armada. Não é verdade. Lista dos países com maior armamento entre civis pela organização Small Arms Survey conta com países repressivos como Arábia Saudita e Iraque. Trata-se mais de uma importação da retórica bélica dos EUA, que desponta como número um na lista, do que um nexo causal entre armas e democracia. Pelo contrário, na última década, triplicaram os casos de ataques armados nos EUA. Escolas, empresas, igrejas foram alvejadas: 526 mortos desde 2010.
Em armamento, Bolsonaro não tem o povo ao seu lado. 72% da população é contra armamento, nos diz Datafolha. Ou instituições acordam de seu sono profundo ou continuaremos a ser governados por um presidente que pensa que a democracia é meia dúzia de manifestantes armados em Brasília.