Tiros em ambientes escolares e crimes contra mulheres têm reforçado efeitos da política de liberação de armas do governo federal, apontam especialistas. Alunos foram atacados no Ceará nesta quarta-feira
Reportagem publicada no Estadão (clique para acessar o texto original)
Casos de acidentes, ataques em escolas e feminicídios têm chamado a atenção para os riscos do aumento da circulação de armas de fogo nas mãos de civis no Brasil. Nesta quarta-feira, 4, um adolescente de 15 anos atirou em três colegas de escola no Ceará com arma registrada no nome de um CAC (colecionador, atirador desportivo e caçador).
Em São Paulo, mais dois casos recentes se somam a ocorrências similares: o CAC que assassinou a ex-mulher e o filho caçula, de 2 anos, na zona leste da capital no dia 12 de setembro; e uma criança de 8 anos que disparou contra o cunhado, sem querer, em Jacareí no dia 8 de agosto.
Estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública concluiu que, embora os assassinatos tenham caído nos últimos anos, 6,4 mil vidas poderiam ter sido salvas entre 2019 e 2021, quando o governo Jair Bolsonaro (PL) publicou uma série de decretos que levaram ao afrouxamento das regras para obtenção do porte e da posse de armas pela população civil.
Levantamentos indicam que a quantidade de armas registradas por CACs, uma das principais modalidades para aquisição de armamento, quase triplicou em três anos e ultrapassou 1 milhão em julho.
Com base em cenários já estudados fora do País, especialistas acreditam que os efeitos da flexibilização devem ser sentidos com maior intensidade nos próximos anos. “Uma arma comprada hoje não vai ser utilizada imediatamente”, afirma o pesquisador Daniel Cerqueira, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Um homicídio, do ponto de vista estatístico, é um fenômeno raro. As pessoas não compram armas e saem atirando, matando o outro”, continua.
Estudo publicado nos Estados Unidos pelo National Bureau of Economic Research indica que os efeitos mais negativos da aquisição de uma arma atingem o ápice entre dois a três anos após a liberação do porte. Pesquisadores alertam que, ainda assim, os danos podem ser causados em até 50 anos após a compra.
Paralelamente, resultados de estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública liderado por Cerqueira apontaram que, a cada 1% a mais na difusão de armas, há aumento de 1,1% na taxa de homicídio. Conforme os pesquisadores, isso demonstra que a queda registrada no número de homicídios ao longo dos últimos anos poderia ser ainda maior sem a política armamentista do governo atual.
“Levantamos três fatores que estariam acarretando na diminuição de homicídios no Brasil: mudanças na questão demográfica, políticas efetivas de segurança pública adotadas em alguns Estados e o armistício na grande guerra do narcotráfico, sobretudo liderado pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) e Comando Vermelho”, afirma.
A política armamentista do governo Bolsonaro, afirma o pesquisador, foi no contrafluxo desses fatores e “segurou um pouco a maré”. “Se não fosse essa política, a taxa de homicídios teria caído muito mais”, continua. Essa conclusão foi tirada a partir de uso de uma metodologia específica para fazer a análise causal de fenômenos sociais. Os dados analisados vão de 2016 a 2021.
Cerqueira afirma que, apesar do senso comum, os estudos na área indicam que a arma de fogo, no geral, não é um instrumento que propicia segurança ao lar. Em parte dos casos, acontece o contrário – com a ocorrência, por exemplo, de acidentes com crianças e de crimes de feminicídio. “Quanto mais armas, há mais homicídios.”
No caso dos latrocínios, o estudo indica que os efeitos do número maior de armas em circulação também são diretamente proporcionais: a cada 1% no aumento das armas de fogo, a taxa de latrocínio aumenta cerca de 1,2%. Em crimes patrimoniais, que não necessariamente contam com uso de armas, não foi detectada relação causal.
Com base nas descobertas, o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública permitiu avaliar o impacto da legislação armamentista do governo federal nos índices de homicídio do país. A investigação constatou que 6.379 vidas poderiam ter sido poupadas entre 2019 e 2021, período em que o governo federal publicou mais de 40 atos normativos e decretos para fragilizar os mecanismos estabelecidos pelo Estatuto do Desarmamento.
Crimes por impulso podem ser potencializados
Cerqueira afirma que, em geral, quase metade das mortes intencionais são provocadas por questões interpessoais. As armas, em meio a isso, potencializam crimes cometidos por impulso. “Pode ser um CAC que nunca cometeu nenhum crime, por exemplo, mas que se envolveu em uma briga de bar, uma briga de trânsito, numa escaramuça por razões ideológicas, e ele estava com a arma de fogo, se sentiu empoderado naquele momento e terminou matando o outro”, exemplifica.
Ao mesmo tempo, o pesquisador afirma que o aumento de armas, mesmo obtidas legalmente, municia o crime organizado. “Quanto mais armas no mercado legal, mais vão para o mercado ilegal, fazendo o preço baixar e possibilitando que mesmo os criminosos mais desorganziados consigam comprar uma pistola”, afirma.
Violência contra a mulher
Para Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, há uma série de fragilidades das normas atuais para controle das armas. “A regulamentação permite que um atirador esportivo recém-cadastrado compre até 60 armas de foto”, destaca. “É uma quantidade muito absurda e sem nenhuma conexão com a atividade de tiro esportivo.”
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Os riscos, nesse cenário, são os mais diversos possíveis. Levantamento recente do instituto identificou tendência de alta em casos de feminicídio e outros crimes cometidos contra mulheres relacionados a registros de CACs. Até setembro deste ano, já foram quatro casos identificados, maior patamar desde 2018 pelo menos. “A gente vê uma expectativa, infelizmente, de piora nos próximos anos”, afirma.
“A hipótese é que essas armas vão acabar sendo utilizadas para agravar dinâmicas”, continua. Como exemplo, cita desde brigas por motivos passionais a desavenças em ambientes escolares. Segundo ela, por mais que os decretos tenham começado em 2019, os efeitos da ampliação demoram a ser sentidos, e isso pode ter sido agravado por conta da pandemia.
Exército diz colaborar com investigações
Procurado, o Exército Brasileiro informou que tanto no caso desta quarta no Ceará quanto no caso de feminicídio em São Paulo suspendeu o certificado de registro dos envolvidos após tomar conhecimento dos casos. “Foram instaurados processos administrativos para o esclarecimento dos fatos e a adoção das medidas legalmente previstas na esfera de competência da Força”, afirmou.
O Exército disse ainda que colabora com as investigações no âmbito criminal, que estão sendo conduzidas pelos órgãos de segurança pública. “Ressalta-se que o Exército Brasileiro não compactua com qualquer tipo de ilegalidade eventualmente cometida, repudiando veementemente atitudes e comportamentos em conflito com a Lei.” Procurado, o Ministério da Justiça não comentou o tema.