Sem sombra de dúvidas, o mundo enfrenta um dos maiores desafios de todos os tempos. A pandemia da Covid-19 alterou completamente as dinâmicas socioeconômicas e representa um enorme risco à saúde pública em todos os países.
A necessidade de adoção de medidas sem precedentes de isolamento social, diretriz recomendada pela comunidade científica internacional como a mais indicada para diminuir o ritmo de contágio e, com isso, impedir que o sistema médico-hospitalar entre em colapso, também traz consigo riscos não negligenciáveis.
Em um país extremamente desigual como o Brasil, em que amplos segmentos da população residem em comunidades densamente povoadas e têm sua renda derivada do trabalho autônomo e informal, a pandemia pode ter efeitos ainda mais devastadores do que o já observado em outros países.
Nesse sentido, a segurança pública não pode ser negligenciada. Inicialmente, é fundamental pensar na proteção de seus profissionais, que desempenham um serviço essencial, estando na linha de frente do atendimento direto à população. Em geral, são os agentes policiais que irão cuidar para que as medidas de isolamento social sejam adequadamente cumpridas pelos cidadãos, o que suscita tensões ante a esse novo papel da polícia. Além disso, o impacto econômico derivado da quarentena eleva o risco de violência, como a doméstica, e de ações criminosas, especialmente se de longa duração. Também não se pode ignorar o impacto da pandemia no sistema prisional brasileiro: a superlotação e a insalubridade das unidades prisionais tornam inviáveis a adoção das medidas sanitárias necessárias para a contenção da epidemia. Essa realidade coloca em risco milhares de apenados, agentes e profissionais que trabalham nas penitenciárias, muitas vezes sem equipamentos adequados.
Considerando a importância da união de forças entre a sociedade civil e o poder público no enfrentamento da pandemia, identificamos 10 medidas fundamentais para a segurança pública.
Como pesquisadores e estudiosos da segurança pública, requeremos às autoridades públicas que estas medidas orientem as políticas e esforços durante a crise da Covid-19.
São elas:
- Garantir Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) que protejam os profissionais da segurança pública e do sistema prisional[1]
Assegurar o fornecimento de EPIs e as condições sanitárias e de higiene para o desempenho das funções dos profissionais da segurança pública e do sistema prisional;
Elaborar e implementar (i) protocolos de ação para minimizar risco de contágio e (ii) Planos de contingência[2].
2. Viabilizar protocolos e tecnologias que garantam a proteção dos profissionais que atendem diretamente ao público nas situações não emergenciais
Facilitar registros de crime pela internet; diminuir profissionais em atendimento ao publico; criar escalas que considerem o ritmo de infecção e afastamento desses profissionais por COVID-19;
Estabelecer protocolos de prioridade do trabalho considerando a possibilidade de atividades em teletrabalho.
3. Reforçar a estrutura de hospitais dedicados aos profissionais de segurança e priorizar a testagem destes.
Garantir acesso à saúde e às condições de atendimento dos hospitais dedicados aos profissionais da segurança e seus familiares próximos;
Assegurar a testagem massiva e prioritária destas categorias, garantindo um melhor controle e afastamento preventivo de infectados, evitando perda de efetivo e preservando a saúde de agentes e familiares.
4. Apoiar e fortalecer o trabalho das forças de segurança a partir da colaboração federativa entre União, Estados e Municípios.
Garantir a
liberação de recursos do Fundo Nacional de Segurança para compra de equipamento
adequado das forças de segurança;
Elaborar e disseminar diretrizes, com apoio do Governo Federal em parceria com estados, sobre protocolos de abordagem policial, uso da força, perícia e registros de crime durante a emergência da COVID-19;
Elaborar protocolos pré-pactuados para emprego da Força Nacional de Segurança Pública para cobrir déficits nos efetivos de forças impactadas pela contaminação de seus agentes;
Compartilhar inteligência e protocolos para atuação policial em caso de graves rupturas da ordem ou confronto social.
5. Monitorar e reorientar o trabalho das forças de segurança para lidar com os novos problemas de segurança, bem como ter políticas claras de uso da força para lidar com novos desafios surgidos com a crise
Monitorar continuamente a situação e definir atuação rápida para lidar com as emergências[3] e identificar novas dinâmicas criminais (saques, roubos de mercados, conflitos coletivos, etc.);
Priorizar o enfrentamento de crimes violentos;
Planejar com antecedência o atendimento de novas demandas (escoltas de produtos sensíveis como medicamentos, equipamentos de proteção, etc.);
Reorganizar os protocolos e programas de policiamento a partir das novas dinâmicas criminais observadas após medidas de isolamento social (violência doméstica, roubos de insumos hospitalares etc.);
Elaborar e implementar protocolos operacionais para ações de fiscalização do distanciamento social/quarentena, controle de convulsão social, etc.;
Repensar as ações relacionadas ao patrulhamento ostensivo de comunidades pobres e densamente povoadas, com vistas a reduzir potenciais ações letais.
6. Priorizar e desenvolver metodologia específica para violência doméstica
Aumentar a capacidade de pronta resposta, reforçar espaços de notificação e acolhimento de vítimas (como casas abrigo, por exemplo);
Possibilitar o registro da violência doméstica pela Internet;
Criar redes de apoio e campanhas e serviços de acolhimento para as mulheres, crianças e adolescentes vítimas;
Estabelecer novas rotinas para preenchimento do Expediente Apartado de Medidas Protetivas, bem como para a execução das patrulhas Maria da Penha (desenvolvidas pelas guardas municipais e polícias militares) como forma de prevenir o agravamento de situações de violência que podem culminar em feminicídios.
7. Estabelecer mecanismos seguros e confiáveis para o registro das mortes (garantindo insumos para testagem obrigatória e investigação de todas as mortes suspeitas)
Garantir a investigação de mortes suspeitas relacionadas a problemas de saúde, ainda que a posteriori, por meio de coletas de materiais para que o exame e o diagnóstico sejam garantidos;
Manutenção das perícias e autópsias de mortes suspeitas de violência, ainda que com métodos menos invasivos de exames (de forma a proteger peritos e legistas), garantindo assim o fornecimento de elementos os esclarecimentos dos crimes.
8. Considerar a prisão domiciliar ou outras alternativas penais aos detentos pertencentes ao grupo de risco para a infecção (gestantes, doenças preexistentes, maiores de 60 anos) e presos provisórios que tenham cometido crimes sem violência (como furto, por ex.)
Realizar mutirão do poder judiciário para revisão das penas privativas de liberdade e das prisões provisórias, com vistas a diminuir a superlotação e, dessa maneira, a taxa de contágio por COVID-19;
Implementar a Recomendação CNJ 62/2020[4] do Conselho Nacional de Justiça, que orienta o Poder Judiciário a reavaliar prisões provisórias, de grupos vulneráveis e prisões preventivas com prazo superior a 90 dias ou que resultem de crimes menos graves, assim como o habeas corpus coletivo concedido para grávidas e mães de crianças de até 12 anos pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2018.
9. Garantir às pessoas privadas de liberdade direitos como alimentação adequada, reforço em materiais de higiene, atendimento à saúde, visitação, entre outros.
Criar protocolos para que as famílias possam entregar gêneros alimentícios e itens de necessidade básica (como higiene);
Implementar ou reforçar, visitas virtuais através de telefonemas e videochamadas para comunicação entre presos e familiares;
Manter o funcionamento de serviços básicos de atendimento a pessoas egressas do sistema prisional, com orientação sobre acesso ao auxílio emergencial e trabalho articulado com órgãos de saúde e assistência social.
10. Assegurar a proteção da privacidade e a segurança de dados pessoais associados à utilização de tecnologias de monitoramento e controle de deslocamento e hábitos sociais.
Garantir a transparência da gestão e utilização dos dados e informações que poderão ser utilizados em eventuais ferramentas de controle e monitoramento do isolamento social dos cidadãos durante a pandemia;
Assegurar o respeito aos princípios de proteção de dados, tais como dispostos na Lei Geral de Proteção de Dados.
Assinam:
Alberto Kopittke (Doutor em Gestão Pública, diretor executivo do Instituto Cidade Segura)
Aline Kerber (Socióloga, Especialista em Segurança Pública e Cidadania e diretora executiva do Instituto Fidedigna)
Bráulio Silva (Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais)
Bruno Langeani (Bacharel em Direito, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz)
Bruno Paes Manso (Doutor em Ciências Políticas, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência – USP)
Carolina Ricardo (Mestre em Filosofia do Direito, diretora executiva do Instituto Sou da Paz)
Cesar Barreira (Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal do Ceará e integrante do Laboratório de Estudos da Violência – LEV)
Claúdio Beato (Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais)
Dalva Borges de Souza (Doutora em Sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Criminalidade – NECRIVI da Universidade Federal de Goiás – UFG)
Daniel Cerqueira (Doutor em Economia, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA)
Eduardo Pazinato (Advogado, Mestre em Direito, Coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA)
Felippe Angeli (Mestre em Ciências Políticas, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz)
Frederico Marinho (Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais)
Haydée Caruso (Doutora em Antropologia, professora da Universidade de Brasília)
Isabel Figueiredo (Mestre em Direito Constitucional, consultora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública)
Íris Gomes dos Santos (Professora do Departamento de Gestão Pública da Universidade Federal da Paraíba – UFPB)
Jania Perla Diógenes de Aquino (Doutora em Antropologia Social, professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Laboratório de Estudos da Violência – LEV)
José Vicente da Silva Filho (coronel da reserva da PM de São Paulo e ex- Secretário Nacional de Segurança Pública)
Lígia Madeira (Professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS)
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (Doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal de Minas Gerais)
Luiz Fabio Silva Paiva (Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal do Ceará e integrante do Laboratório de Estudos da Violência – LEV)
Raul Jungmann (ex-ministro da Reforma Agrária, ex-deputado federal, ex-ministro da Defesa, ex-ministro da Segurança Pública)
Renato Sérgio de Lima (Doutor em Sociologia, professor da Fundação Getúlio Vargas e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública)
Valéria Oliveira (Doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal de Minas Gerais)
Tulio Kahn (Doutor em Ciência Política, pesquisador e consultor para assuntos de segurança pública)
APOIO:
[1] Por profissionais de segurança pública nominamos todos os trabalhadores das guardas municipais, polícias (militar, civil, técnico-científica, rodoviária federal e federal), do sistema prisional e do sistema socioeducativo (agentes prisionais, de escolta, etc.) e outras categorias que desempenhem trabalhos correlatos.
[2] Exemplos: o estado de São Paulo criou um protocolo para casos como a suspeita de contaminação ou contaminação confirmada, bem como para higienização de viaturas, reduzindo riscos de contágio. Já Santa Catarina, produziu um plano de contingência para ter uma reserva operacional caso o número de afastamentos se agrave. (https://www.sc.gov.br/noticias/temas/saude/santa-catarina-registra-dois-novos-casos-de-coronavirus-e-divulga-plano-de-contingencia-para-enfrentar-a-doenca)
[3] A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo publicou a portaria 007-R/2020, que cria um grupo de trabalho com o objetivo de integrar servidores da segurança pública com outros agentes estatais para definir necessidades prioritárias e desencadear ações intersetoriais durante a pandemia.
[4] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf