Armas de fogo vitimaram 6,3 mil mulheres no Brasil em 2023, revela pesquisa do Instituto Sou da Paz
O soldado da polícia militar Thiago Cesar de Lima estava casado há apenas seis meses quando assassinou sua esposa com dois tiros em uma rua de São Paulo, ela tinha reportado à polícia que Thiago havia apontado uma arma para ela durante uma discussão um mês antes de ser assassinada. Naquela noite, Erika Ferreira se tornou uma das 3.946 mulheres assassinadas no Brasil, em 2023. Metade dessas mortes foram provocadas por armas de fogo, como aconteceu com Erika. A 4ª edição da pesquisa Pela Vida das Mulheres: o papel da arma de fogo na violência baseada em gênero, produzida pelo Instituto Sou da Paz, revela que a queda de homicídios no país não freou mortes de mulheres por armas de fogo, o que demonstra a necessidade de políticas públicas de controle de armas orientadas às questões de gênero.
Embora as estatísticas das Secretarias de Segurança Pública sobre a autoria e circunstâncias dos homicídios não permitam traçar o perfil dos assassinos das mulheres, os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação permitem rastrear as características dos sujeitos que cometem violência armada não letal contra as mulheres. A pesquisa mostra que, assim como o assassino de Erika, as pessoas que têm proximidade com a vítima são autoras da agressão armada em 46% dos casos. Dentro desse número os parceiros íntimos, companheiros ou ex-companheiros, responderam por 29% das agressões não fatais com emprego de arma de fogo em 2023. Os agressores são em sua maioria homens, 76%, e adultos, 48%, o que reforça a importância do debate sobre o papel da masculinidade e do machismo na manutenção da violência contra a mulher.
“É urgente falar do impacto da violência armada na vida das mulheres e da necessidade de investir em políticas de controle de armas orientadas às questões de gênero”, destaca Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. “São medidas que podem contribuir para a prevenção dos feminicídios e para o enfrentamento de um problema social que exige intervenção pela União, estados e municípios e em diferentes áreas, como saúde, segurança pública e assistência social”.
Com dados do Ministério da Saúde, o relatório mostra que Norte e Nordeste continuam apresentando as maiores taxas de homicídios femininos, em números gerais e por armas de fogo. O Sudeste se mantém com as taxas mais baixas, porém esses números também podem ser impactados pela pior qualidade nos dados da região, já que ele apresenta a mais alta taxa de mortes violentas por causas indeterminadas, o que gera uma subnotificação dos homicídios não classificados. A pesquisa revela que independente da forma como o assassinato é efetuado, o homicídio feminino é um problema de segurança pública no país inteiro: mesmo nas regiões onde as taxas de homicídio são menores, destaca-se o risco de de sofrer agressão por arma de fogo dentro de casa.
Homicídios de mulheres, total e com arma de fogo. Unidades da Federação, 2023
(taxa por 100 mil mulheres)
Fonte: SIM/Datasus; IBGE
Essas vidas são perdidas em grande parte na rua, 40%, mas, nos últimos anos, a residência ganhou expressão como local de ocorrência da agressão com arma de fogo que resulta em óbito. Em 2023, esses casos corresponderam a 28%, mas o aumento que essa porcentagem vem sofrendo desde 2019 chama atenção para as dinâmicas das violências ocorridas nos lares.
Os homicídios ocorridos nas residências ganham expressão quando os números são analisados regionalmente. No Sul e Centro-Oeste, regiões com taxas menores de informação ignorada, 43% dos casos ocorrem em residências. Já no Nordeste, mesmo com dados também mais qualificados sobre local do crimes, as vias públicas são os locais em que mais ocorrem os crimes, correspondendo a 47% dos óbitos. Esse número pode ser composto por feminicídios ocorridos em vias públicas, assim como mais mortes em decorrência do contexto de criminalidade e de disputas faccionais, o que não significa descartar haver também motivação por gênero no conjunto dessas mortes.
Homicídios de mulheres com arma de fogo, segundo local de ocorrência da agressão.
Brasil e Regiões, 2023
Fonte: SIM/Datasus
Violência não letal armada: um problema que cresce
Apesar do número total de homicídios por arma de fogo ter diminuído e se mantido estável no país depois do pico de casos de 2017, a violência armada não letal voltou a crescer. O ano de 2023 atingiu quase o mesmo número do pico das notificações de 2017, um crescimento de 23%, se comparado a 2022, e de 35% em relação a 2021. Desde 2021, esse tipo de violência passou a crescer em todas as regiões do país, mas em 2023 esse aumento foi destaque no Norte (+29%), Nordeste (+29%) e Sudeste (+23%).
Notificações de violência armada não letal contra mulheres. Brasil, 2014-2023
Fonte: Sinan/Datasus
“O aumento das notificações no Sinan possivelmente indica uma aproximação gradual dos registros em relação a uma realidade mais grave da violência armada não letal contra mulheres no país. São casos que chegam para atendimento no sistema de saúde em um macro contexto de aumento da circulação de armas na sociedade brasileira”, explica Carolina.
A pesquisa mostra que a violência armada não letal é muitas das vezes associada a outros tipos de violência. No ano de 2023, foram as violências física (52,8%), psicológica/moral (22,2%) e sexual (13,8%) as mais associadas à agressão armada. Uma dinâmica característica da violência doméstica é a repetição, isso não se altera quando a arma é utilizada como objeto, pois em 35% das notificações a vítima já havia sofrido outros episódios de agressão.
Perfil das vítimas de armas de fogo
Os dados revelam que é aos 15 anos, idade da celebração do ritual de passagem que demonstra o amadurecimento feminino e a mudança da infância para a adolescência, que o homicídio das mulheres começa a ocorrer com armas de fogo. O grupo feminino de 15 a 19 anos responde por 11% dos assassinatos. Mas é entre as jovens e adultas de até 39 anos que se concentra a maior proporção dos casos, elas são 59% das vítimas.
A desigualdade racial é uma problemática social que também impacta as vítimas fatais: a taxa de homicídios de mulheres negras (2,2) é duas vezes superior à de mulheres não negras (1,1). As mulheres negras são as mais assassinadas, 72%, seguidas pelas brancas, 26,6%. A vitimização das mulheres negras é mais expressiva quando é analisado o recorte dos óbitos entre as adolescentes, elas representam 80% nesse caso.
O perfil das vítimas não letais é muito similar ao dos casos letais: as mulheres que sofrem esse tipo de violência estão na fase adulta, entre 20 e 39 anos, correspondendo a 55% dos casos, e a maioria também são mulheres negras, 64% das notificações. Há, porém, um fator diferencial nesses dois tipos de violência, um maior número de adolescentes, entre 10 e 19 anos, vítimas desse tipo de violência, elas corresponderam a 17,5% dos casos em 2023.
“No contexto em que temos uma grande quantidade de armas de fogo circulando na sociedade brasileira, os dados evidenciam a vulnerabilidade das mulheres à violência armada, tanto nas ruas como dentro de casa. Nesse cenário, é fundamental articular a política de controle de armas à agenda de defesa dos direitos das mulheres, considerando não só a alta letalidade provocada por esse instrumento e o risco de feminicídios, mas também seu emprego nas diversas formas de dominação e controle que marcam as relações desiguais entre os gêneros na sociedade brasileira” diz Carolina Ricardo. “O Brasil dispõe de leis importantes que limitam o acesso a armas por parte de autores de violência contra a mulher. É preciso garantir sua aplicação e efetividade. Isso depende do engajamento dos servidores que operam nas pontas, assim como da ampliação e qualificação dos serviços de atendimento e proteção a mulheres vítimas de violência que muitas vezes ainda não recebem as devidas orientações e encaminhamentos para serviços protetivos quando são atendidas no sistema de saúde”.
Acesse a pesquisa: https://lp.soudapaz.org/pelavidadasmulheres