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    Desafios para a segurança pública no Brasil

    1 de dezembro de 2023 às 04:51

    Artigo escrito pela diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, publicado pela Washington Brazil Office (clique para acessar o texto original)

    O Brasil possui hoje quase 3 milhões de armas nas mãos de civis. Esse número corresponde a mais do que o dobro dos dados de 2018, quando o acesso foi facilitado pelo governo de Jair Bolsonaro, que publicou mais de 40 normas ampliando o direito à posse de armas por civis. A análise dos dados foi feita pelos institutos Sou da Paz e pelo Igarapé, para compreender a dimensão das políticas armamentistas nesse período.

    Para se ter uma ideia, um atirador desportivo podia adquirir até 60 armas, sendo 30 delas de uso restrito, como fuzis. Em julho, o presidente Lula assinou um decreto que reduz à metade esses limites. A nova norma é fundamental para reverter esse quadro. Porém, as consequências dessa ampliação do acesso às armas são profundas e longas.

    A taxa de homicídios vem caindo no Brasil, mas o número de mortes por armas de fogo tem se mantido no mesmo patamar e corresponde a 76% do total de homicídios, muito acima da média mundial, de 44%. Há grupos populacionais mais vulneráveis à violência letal. Enquanto os homicídios de pessoas brancas caíram 26,5%, o de pessoas negras aumentou 7,5%, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A população negra também foi, em 2021, a principal vítima de homicídios dolosos (77,6%) e da letalidade policial (84%).

    Outro impacto importante das políticas armamentistas é o fato de que a existência de uma arma de fogo dentro de casa agrega letalidade à violência de gênero. Dessa forma, o percentual de mulheres mortas em suas residências passou de 19% para 27%, entre 2012 e 2020, segundo o Relatório “Papel da Arma de Fogo na Violência Contra a Mulher”, pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz.

    Outro problema importante é o potencial de migração de armas legais para o crime organizado, como o caso recente das 21 metralhadoras furtadas de um quartel do Exército. Há, ainda, uma elevação da violência política e de ameaças, incensada por discursos armamentistas bastante preocupantes em disputas polarizadas, como tem acontecido no Brasil.

    Apagão de investigação

    Como solucionar um problema sobre o qual se conhece pouco? O Brasil ainda vive patamares alarmantes de homicídios, com uma taxa de 23,3 mortes violentas por 100 mil habitantes. Há uma grave impunidade quando se trata de elucidar homicídios. Uma análise do Sou da Paz mostrou que somente 37% desses crimes são esclarecidos. No Rio de Janeiro, apenas 15% dos homicídios são desvendados.


    Por parte da população, a descrença na capacidade do Estado em resolver esses conflitos abre espaço para o justiçamento, o que, por sua vez, alimenta o crime organizado, que em muitos casos passa a se responsabilizar por punir os homicidas. E assim o crime segue matando sem nenhum custo adicional. A sociedade entra em um looping de violências, em que as principais vítimas são os jovens negros.

    A politização das polícias e o aumento da bancada da bala

    Um dos meios de enfrentar a violência letal é a criação de leis e de políticas públicas de segurança responsáveis. Esse tema deveria ser uma das pautas principais a serem discutidas no Parlamento brasileiro. Mas, nos últimos anos, candidatos oriundos das forças de segurança passaram a ocupar cada vez mais cadeiras no Congresso Nacional. Um levantamento do Instituto Sou da Paz mapeou 103 deputados federais, estaduais e senadores dessa categoria.

    A presença maciça de parlamentares oriundos das forças de segurança e que compõem a chamada “Bancada da Bala” contribui para osequestro da pauta de segurança no Legislativo, que acaba tendo foco na defesa do uso excessivo da força por parte das instituições policiais, no endurecimento penal e na flexibilização do acesso às armas. Todo esse pacote reforça a violência.

    A correção dessa distorção da representação da sociedade no Parlamento, passa por atribuir contornos mais claros às candidaturas de policiais, com regras de quarentena e prazos para desincompatibilização bem definidos. Também é necessário extinguir a “porta giratória”, uma autorização para que policiais militares com mais de 10 anos de serviço retornem ao serviço se não forem eleitos. A decisão de se tornar um político deve ser definitiva. É importante evitar que policiais saiam temporariamente para lançar candidaturas. Isso garante a liberdade de entrar na política e exercer seu livre direito de participação política, mas impede a contaminação partidária e ideológica na corporação, com o retorno dos policiais após eleições ou mandatos.

    Caminhos possíveis

    Não há solução simples para uma questão tão complexa. Para aliviar a violência, é necessário combinar a capacidade de gerenciar crises com planejamentos de curto, médio e longo prazos. A lógica das estratégias para conter crises também tem de mudar, adotando medidas que não reproduzam o confronto, como o mero reforço de operações policiais ou de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelo Exército em comunidades onde há a presença de crime organizado.

    Outro ponto é que o Fundo Nacional de Segurança Pública, com cerca de 1,5 bilhões, deveria ser usado para controle de armas, investigação de homicídios e do uso excessivo da força e implementar políticas efetivas e comprovadas, como a adoção de câmeras acopladas aos uniformes de policiais. É uma política que funciona para proteger as vidas de policiais e da população.

    Sobre o controle de armas, é urgente terminar a transição da fiscalização dos CACs para o domínio da Polícia Federal, melhorar o sistema de registro de dados, com marcação de todas as munições, adotar um programa de recompra das armas e implantar programas de controle de armas nos estados.

    Para reduzir os homicídios, é importante priorizar meios de preservar a vida, com foco na dimensão racial do problema, criar um indicador nacional de esclarecimento de homicídios e orientar a oferta de recursos públicos federais de acordo com metas de redução de homicídios.

    No caso da letalidade policial e da politização excessiva das forças de segurança, o país precisa orientar a atividade policial à proteção das pessoas e à prestação de serviços à comunidade, modernizar a legislação que regulamenta as corporações policiais, aprimorar e fortalecer mecanismos de controle da polícia, enfrentar os processos de politização e de instrumentalização política das corporações policiais, exigir quarentena e extinção da chamada “porta giratória” (autorização para que policiais militares com mais de 10 anos de serviço retornem ao serviço se não forem eleitos) e estabelecer regras que mostrem o afastamento da conduta como policial de sua ideologia e ação política. Também é extremamente necessário garantir a valorização do trabalhador policial a partir da proteção e garantia de direitos e de condições apropriadas de trabalho, com destaque ao fortalecimento dos programas de atenção à saúde física e mental.

    Tudo isso mostra que o problema da violência deve ser enfrentado por diversos aspectos e profundidades conjugadas – e que o poder público tem meios de implementar políticas adequadas à segurança pública sem que seja necessário ampliar a dor e o sofrimento. Todos os caminhos escolhidos devem visar o direito à vida digna.

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