Há 15 anos, sociedade foi às urnas decidir se o comércio de artefatos de fogo e munição para a população em geral deveria ser proibido. Cerca de 59 milhões de pessoas manifestaram-se a favor do comércio sem restrições. Pelo menos 70% dos homicídios no país são por tiros
Por Augusto Fernandes (leia a matéria completa publicada pelo Correio Braziliense)
Em outubro de 2005, os brasileiros foram às urnas para decidir se o comércio de armas de fogo e munição para a população em geral deveria ser proibido. À época, o referendo dividiu o país e houve uma ampla mobilização de entidades e personalidades, nas ruas e na tevê, para que a venda fosse autorizada apenas a profissionais da segurança pública e de outras entidades previstas em lei. O principal argumento de quem era contra a comercialização irrestrita dos artefatos foi que isso poderia aumentar o número de mortes por bala. Apesar dos apelos, mais de 59 milhões dos eleitores votaram para que o comércio não fosse restringido. Hoje, 15 anos depois, as armas são responsáveis por, pelo menos, 70% dos homicídios no país.
Os dados mais recentes do DataSUS, departamento de informática do Sistema Único de Saúde (SUS), mostram que, em 2019, dos 43.062 assassinatos registrados no Brasil, 30.206 foram causados por arma de fogo. Os números, divulgados há dois meses, são preliminares. O último ano com dados consolidados foi 2018, quando disparos de revólver foram a causa de 41.179 óbitos, 73% do total de homicídios daquele ano (55.914).
O referendo completou 15 anos na última sexta-feira. O levantamento do DataSUS preocupa porque, nesta década e meia, as mortes violentas por armas de fogo representaram 62% do total de assassinatos. Entre 1990 e 2004, a plataforma contabilizou 597.940 homicídios, sendo 374.054 provocados por revólveres, pistolas e afins. Agora, a realidade é diferente, e a quantidade de brasileiros mortos por um ataque por bala desde o ano da eleição, por si só, quase empata com o total de vidas interrompidas desde 2005: 576.704 das 805.262 pessoas mortas foram vítimas de tiro.
Com os números em alta de homicídios provocados por armas, especialistas em segurança pública dizem que há pouco de positivo nesses 15 anos pós-referendo. Vice-presidente da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Espírito Santo, Roberto Darós destaca que o “mercado legal de armas de fogo alimenta a criminalidade” e “a disseminação das armas pela sociedade fragiliza a precária atividade policial preventiva de patrulhamento, aumentando as ocorrências de atos criminosos e elevando o percentual de homicídios cometidos”.
“O Brasil é um país que sofre diretamente os efeitos da criminalidade, apresentando alarmantes índices de violência urbana, sempre acima de 50 mil homicídios por ano. Entender e aceitar essa relação entre o mercado legal e ilegal de armas é imprescindível para se chegar à conclusão científica que incentivar a aquisição e posse de armas de fogo pelo cidadão de bem não é uma política pública eficiente e aceitável no controle da violência urbana e pacificação da sociedade”, alerta.
Flexibilizações
Em meio aos índices alarmantes de mortes por armas de fogo no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, desde que assumiu o Palácio do Planalto, já assinou, ao menos, 25 documentos para facilitar o acesso aos artefatos — de janeiro do ano passado até hoje, foram 10 decretos, 13 portarias e dois projetos de lei —, além de ter revogado regulamentos que traziam importantes avanços para marcação, controle e rastreamento de armas e munições.
Uma das normas mais recentes foi publicada em agosto. A Instrução Normativa (IN) 174 propôs a simplificação dos processos para a posse e o porte, e a ampliação do prazo de validade do registro de uma arma para 10 anos. O texto estabeleceu que cada brasileiro tem o direito de adquirir até quatro peças e autorizou treinos mensais.
Outra decisão, de abril deste ano, ampliou a quantidade de munições que podem ser compradas por cidadãos comuns, militares e policiais. O limite aumentou em 12 vezes, saindo de 50 para 600 por ano, mas não trouxe nenhuma contrapartida em termos de obrigações ou rastreabilidade desses cartuchos.
O texto entrou em vigor no dia seguinte à reunião ministerial de 22 de abril, em que Bolsonaro afirmou que queria armar a população — “eu quero todo mundo armado, porque povo armado jamais será escravizado” —, mas foi suspenso por uma liminar da Justiça Federal de São Paulo, em junho.
Como reflexo das canetadas presidenciais, no primeiro ano de mandato os registros de arma de fogo ativos no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal, chegaram a 1.056.670, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número anterior, de 2017, era de 637.972 (65% a menos). Além disso, até agosto deste ano, o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército, contabilizou 1.128.348 registros de arma de fogo ativos — o órgão não informou dados de anos anteriores.
Riscos
A ideia por trás das decisões do presidente é parecida com a das pessoas que votaram a favor da comercialização, em 2005, de que os brasileiros precisam do direito de ter uma arma para proteger a própria vida e a de suas famílias. Mas, na avaliação da diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, esse discurso é falacioso.
“Vender armas não precisa, necessariamente, ser um problema. Acontece que todo o resto do Estatuto do Desarmamento, todas as outras formas de controle das armas não são implementadas. Isso é consequência do imaginário popular de que, ao adquirir uma arma, estaremos garantindo a legítima defesa. Isso é muito nocivo, porque não é real. Arma não defende. Ela gera muito mais riscos do que protege”, observa.
Ela acrescenta que “a arma não é um bem como outro qualquer, pois tem um impacto individual e um impacto coletivo muito grande na segurança pública”. “Ela é um instrumento de crime, de homicídios. Ter uma arma em casa gera risco para as pessoas que vivem nessa residência e para os vizinhos. Além disso, ela é fator de interesse para os bandidos”, salientou.
O último alerta de Carolina está ligado ao fato de que, nos últimos cinco anos, caiu a quantidade de apreensões de armas ilegais pelas forças de segurança. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número passou de 127.915, em 2015, para 106.776 em 2019, diferença de 83%.
Para o presidente da Organização Internacional Control Arms e membro do Fórum, Ivan Marques, isso é anacrônico, pois houve um aumento de armas em circulação pelo país. Ele lembra que como “historicamente observa-se que parte dessas armas migra do mercado legal para o ilegal, infere-se que a diminuição das apreensões é também sinal de redução de interesse neste tipo de operação”.
“Ainda que seja uma opção política aumentar o estoque de armas legais em poder do cidadão, é responsabilidade do Estado garantir que armas ilegais sejam retiradas de circulação. Entretanto, os números mostram que estamos assistindo ao desinteresse das polícias estaduais em fazer este trabalho, ao mesmo tempo em que as bases nacionais de informação tornam-se cada vez mais obsoletas. É a receita para o desastre”, destaca Marques, no Anuário Brasileiro de Segurança Pública deste ano.
Brasileiros na mira
Passados 15 anos do referendo armamentista, estima-se que sete em cada 10 brasileiros vítimas de assassinato atualmente sejam executados por disparos de armas de fogo. Veja os números:
Homicídios no Brasil
2005: 47.578
2006: 49.145
2007: 47.707
2008: 50.113
2009: 51.434
2010: 52.260
2011: 52.198
2012: 56.337
2013: 56.804
2014: 59.681
2015: 58.138
2016: 61.143
2017: 63.748
2018: 55.914
2019: 43.062*
Homicídios causados por arma de fogo
2005: 33.419
2006: 34.921
2007: 34.147
2008: 35.676
2009: 36.624
2010: 36.792
2011: 36.737
2012: 40.077
2013: 40.369
2014: 42.755
2015: 41.817
2016: 44.475
2017: 47.510
2018: 41.179
2019: 30.206*
* Dados preliminares
Fontes: Anuário Brasileiro de Segurança Pública; Atlas da Violência; DataSUS.