Reportagem publicada pelo Consultor Jurídico(clique para acessar o texto original)
O recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou, no domingo (1/1), decreto que muda as regras de acesso a armas de fogo e revoga atos flexibilizadores instituídos por seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL).
A criminalista Carla Silene Cardoso Lisboa Bernardo Gomes, professora do Ibmec BH e da PUC Minas, explica que o novo ato “não tem o efeito de retirar de circulação as armas de fogo que já foram adquiridas”. Mas, apesar de não diminuir efetivamente o armamento da população, ele impede um novo aumento, como confirmam outros especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Se não há uma efetiva redução, a advogada Márcia Dinis, também criminalista, ainda considera que a suspensão da obtenção de novos registros favorece o desarmamento, pois contém o crescimento desenfreado proporcionado pelos atos da gestão anterior.
Outras medidas seriam imprescindíveis para se alcançar uma diminuição, mas Carla ressalta que o decreto “já indica possíveis mudanças que estão por vir”.
A especialista lembra que o próprio ato determina a criação de um grupo de trabalho, com o objetivo de apresentar uma nova regulamentação para o Estatuto do Desarmamento. Assim, “devem ser apresentadas mudanças às normas sobre quem já possui armas em breve”.
Fortes sinais
A advogada e socióloga Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz (voltado à segurança pública), classifica como “emblemática” a publicação do decreto logo no primeiro dia útil do ano, pois mostra a prioridade que o novo governo “precisa e quer dar para o tema”.
Segundo ela, a norma trata de atribuições mais específicas da Polícia Federal e do Ministério da Justiça e Segurança Pública, sem interferir muito em questões referentes ao Exército. Além disso, busca alinhar as normas a decisões já tomadas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos.
Para o advogado Renato Stanziola Vieira, que assumiu nesta segunda-feira (2/1) o cargo de presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o decreto não é meramente simbólico, mas sim cauteloso. Isso porque “reflete a dificuldade jurídica de reverter, num só ato, toda a política armamentista que foi adotada pelo governo anterior”.
Assim, em vez de eliminar todas as armas que entraram em circulação nos últimos anos, o ato foca em suspender as licenças para colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs) — que “vinham se constituindo em fontes de facilitação para que a população civil se armasse indiscriminadamente”.
Na visão de Vieira, o novo decreto “sinaliza que a política armamentista deve ser revista”. A tônica da norma é, também, a de que “não há um direito adquirido à aquisição de armas” a partir da flexibilização patrocinada pelo governo Bolsonaro.
Na verdade, o decreto de Lula inaugura um debate para definir, “com calma e responsabilidade”, qual a melhor política para fiscalizar de forma mais séria a política de uso de armas pela população civil.
O advogado vê com bons olhos a postura da nova gestão “de frear esse armamentismo sem controle, criminógeno e que acaba transformando a sociedade numa terra de ‘salve-se quem puder'”.
De acordo com ele, quando o governo incentiva a população a se armar, como vinha acontecendo, a política de segurança pública como um todo é “relegada aos meios individuais de autoproteção”. Isso demonstra uma “irresponsabilidade do Estado em atuar, de forma uniforme e com respeito às garantias de todos, em favor de uma sociedade mais segura”.
Regras alteradas
O Decreto 11.366/2023 proíbe CACs de comprar e transferir novas armas e munições de uso restrito, até que entre em vigor a nova regulamentação do Estatuto do Desarmamento. O mesmo vale para a renovação de registros.
Quanto às armas e munições de uso permitido, o ato diminui as quantidades possíveis de serem adquiridas. Agora, cada pessoa poderá comprar somente três armas do tipo, para defesa pessoal. Até então, eram permitidas quatro.
Também foram suspensas as concessões de novos registros de CACs, clubes e escolas de tiro. Além disso, quem responder a inquérito policial ou ação penal por crime doloso deverá entregar sua arma de fogo à Polícia Federal ou ao Exército, ou transferi-la para terceiro, em até 30 dias.
O texto proíbe CACs de transportar armas municiadas. Carolina explica que não será mais possível circular com arma carregada, nem mesmo para se dirigir ao clube de tiro.
A diretora-executiva do Sou da Paz também destaca a mudança do prazo para a renovação do registro de arma, que voltou a ser de cinco anos. Bolsonaro havia ampliado esse período para dez anos.
Outro ponto importante é a obrigatoriedade de recadastramento de todas as armas em até 60 dias. Segundo a advogada e socióloga, isso permite uma “fotografia” mais realista da quantidade de armas em circulação.
Ainda conforme o novo ato, será necessário comprovar a efetiva necessidade para adquirir uma arma de fogo de uso permitido. Em outras palavras, o cidadão precisará demonstrar que está “realmente sob algum tipo de risco”.
Todas as armas precisarão ser informadas à PF. Carolina realça a importância desta regra, pois atualmente a instituição e as polícias estaduais não conseguem acessar as armas cadastradas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), administrado pelo Exército. O Sigma registra os dados de armamento de CACs, enquanto o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), gerido pela PF, tem informações sobre armas para defesa pessoal.
A chefe do Sou da Paz ainda indica uma previsão “interessante” sobre a necessidade de segurança e resguardo das armas em casa — “uma medida importante do ponto de vista pedagógico”, segundo ela.
O presidente do IBCCRIM explica que essa regra exige não só um lugar seguro para o armazenamento das armas, mas também que esse local seja um cofre, com tranca. “Há, pois, um recado claro e salutar do risco óbvio que é o de ser proprietário de arma de fogo, em política pública acertada e orientada a dificultar, ao invés de estimular, que a população civil se arme”, assinala.
Lacunas
Dentre aspectos que ficaram fora do decreto, na avaliação de Carolina, está a categorização de cada arma (em uso restrito ou permitido). De acordo com ela, isso é o que hoje autoriza civis a adquirir armas de alta potência — até mesmo mais potentes do que aquelas portadas pelas polícias.
Para a advogada, também seria importante regulamentar o tiro desportivo: sua possibilidade, suas categorias, as quantidades e os tipos de armas usados etc. Ela lembra que esse foi um canal de entrada de muitas armas atualmente em circulação. Outra definição necessária diz respeito ao controle sobre os CACs — especialmente se o Exército continuará sendo o responsável.
“Apesar deste sinal muito positivo, desta mudança muito concreta, é importante que o governo de fato crie um grupo de trabalho e mantenha como prioridade a estruturação da política de controle de armas, para criar condições de se fiscalizar melhor as armas em circulação no Brasil”, conclui.
Em nota, o Instituto Igarapé, também voltado à segurança pública, diz que o decreto “é apenas o primeiro passo para garantir a segurança e paz de toda a população brasileira”, mas “se reveste de grande simbolismo na esperança de que o governo que começa possa enfrentar os muitos desafios existentes”.