No dia 2 de agosto de 2022 foi lançada a quinta edição do relatório “Onde Mora a Impunidade – Porque o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios”, idealizado e elaborado pelo Instituto Sou da Paz. Esse trabalho é um esforço de trazer ao debate público a importância de se enfrentar a impunidade dos homicídios e criar um parâmetro nacional de esclarecimento desses crimes. Desde sua primeira edição, com dados de homicídios de 2015, a publicação do índice tem gerado intenso e salutar debate entre e com as Polícias Civis do Brasil. E nosso objetivo sempre foi esse: gerar um amplo debate público sobre um tema que não tinha a centralidade necessária, gerar movimentos nos Ministérios Pùblicos, nas Polícias Civis estaduais para o cálculo do esclarecimento de homicídios, além de jogar luz na necessidade de investimento nos diferentes atores na cadeia de investigação e esclarecimento de homicídios, particularmente nas Polícias Civis.
O indicador criado pelo Sou da Paz define como esclarecidos os homicídios ocorridos num determinado ano e que tenham sido denunciados pelo Ministério Público até o final do ano subsequente. Essa escolha é fruto de análises de outras metodologias e considera que ter mais de uma instituição, a Polícia Civil e o Ministério Público, que compartilham o mesmo entendimento acerca da autoria e materialidade e compõem o conjunto acusatório da justiça criminal, nos permite mensurar a capacidade do Estado de identificar e responsabilizar os autores de homicídios. É importante ressaltar, contudo, que a existência desse indicador de forma nenhuma invalida outras metodologias de elucidação de homicídios desenvolvidas pelas Polícias Civis. Ao contrário, é salutar que haja métricas complementares.
Para dar um exemplo, os homicídios no Brasil podem ser medidos a partir de dados produzidos pelo Sistema de Saúde (DATASUS) ou pelas próprias polícias por meio das Secretarias de Segurança Pública. O objetivo e metodologia de coleta de dados é diferente entre eles – dados da saúde registram as mortes por local de morte da vítima a partir das certidões de óbito, enquanto os da SSP pelo local da ocorrência e mede também o número de ocorrências (não só de vítimas) e a fonte é o BO. Ao compararmos os diferentes dados, percebemos que os números são distintos, embora as tendências entre ambos se mantenham. Além disso, a transparência ativa e a publicação regular de ambos os dados é essencial. Um dado ajuda a controlar o outro. E de forma nenhuma uma metodologia invalida a outra.
É assim que vislumbramos as diferenças entre o indicador criado pela Sou da Paz e outros indicadores criados por diferentes Polícias Civis: como complementares. Atualmente apenas três estados calculam indicadores de esclarecimento de mortes letais intencionais, e publicam ativamente e de forma regular sua metodologia de mensuração e seus indicadores de esclarecimento – a Paraíba, o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Esforço recente da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil) apresentou um índice nacional de 68,8% de esclarecimento de homicídios entre 2018 e 2020, ainda que não considere e, portanto, não explicite, as diferentes metodologias adotadas por cada uma das PCs brasileiras.
A seguir apresentamos os comparativos entre os indicadores produzidos pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro e o indicador elaborado pela Polícia Civil da Paraíba, e o índice de esclarecimento de homicídios do Instituto Sou da Paz.
O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro produz semestralmente três indicadores acerca da elucidação de mortes violentas no estado: a Taxa de elucidação de Homicídios Dolosos; a Taxa de elucidação de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP); e a Taxa de elucidação de Letalidade Violenta, que engloba ambos os tipos de mortes violentas. Para fins de comparação, o gráfico abaixo utiliza uma média da Taxa de elucidação de Homicídios Dolosos dos dois semestres de cada ano, e disponibilizada aqui.
É importante também ressaltar que nem o Ministério Público nem o Tribunal de Justiça do estado produziram dados sobre as denúncias de homicídios cometidos em 2015, e dessa forma não foi possível incluir este ano na série histórica. Cabe também apontar mudanças da metodologia adotadas pelo ISP no período aferido: especificamente nos anos de 2017 e 2018, o ISP utilizou como prazo de apuração 12 meses após o registro do homicídio. Em 2016, a taxa foi apurada entre 18 a 24 meses após o registro do crime. Já a partir de 2019, em consonância com o documento “Carta do Rio”, elaborado pelos participantes do 1º Encontro Nacional dos Diretores de Departamentos de Homicídios, a taxa de elucidação foi calculada após 24 meses dos registros das ocorrências de letalidade violenta.
Em relação aos homicídios cometidos em 2016, o índice de esclarecimento de homicídios do Instituto Sou da Paz registra um percentual mais elevado que aquele aferido na Taxa de elucidação de Homicídios Dolosos produzida pelo ISP. Mas a partir de 2017, os dois indicadores seguem praticamente juntos, com uma diferença que varia de 2% em 2017, até um máximo de 4,6% em relação à elucidação de homicídios cometidos em 2019. É visível como, principalmente entre 2017 e 2019, ambos os indicadores apresentam trajetórias semelhantes.
O Estado da Paraíba possui uma metodologia própria de mensuração do esclarecimento de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), categoria que abarca todos os crimes dolosos que resultem em morte, como homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte, latrocínios e as mortes cometidas por policiais, assim como as mortes de policiais em serviço, destacada no Relatório mais recente divulgado pelo Sou da Paz.
Um relatório anual com o Indicador de elucidação de Inquérito Policial de CVLI é disponibilizado aqui.
Na série histórica entre 2015 e 2019, é possível perceber um movimento contínuo marcado pela melhoria inicial (2015 a 2016), uma certa estabilidade (2016 a 2018) e um aumento em 2019, que se dá sobretudo no índice de esclarecimento de homicídios do Sou da Paz, e é necessário entender a fundo tamanha variação em apenas uma das taxas. É importante reforçar que o Indicador de elucidação de Inquérito Policial de CVLI da PCPB abarca um conjunto de mortes violentas bem mais amplo que os homicídios dolosos, mas ainda assim, temos tendências que, no conjunto da série histórica, apontam para uma melhoria dos indicadores de esclarecimento do estado.
As críticas à metodologia utilizada pelo Instituto Sou da Paz destacam, desde a primeira edição da pesquisa, situações pontuais que fazem com que a conclusão bem sucedida de um inquérito policial não se reflita no número de denúncias do MP, como, por exemplo, a identificação de autoria envolvendo pessoas menores de 18 anos ou pessoas que já estão mortas no momento da conclusão do inquérito. Seria muito importante que junto com as críticas estas instituições publicassem o montante que abarca cada uma destas situações, para que se possa ter ideia do quanto estes casos afetam o indicador . Mais uma vez, a necessidade de indicadores elaborados e publicados pelas próprias Polícias Civis ganha relevância para ajudar a entender melhor essa diferença.
É fundamental destacar que o trabalho do Sou da Paz no que toca ao esclarecimento de homicídios não se reduz à publicação do “Onde Mora a Impunidade”. Desde 2019, temos reunido um amplo grupo de delegados e delegadas, peritos, promotores e pesquisadores para identificar boas-práticas e ações bem sucedidas já desenvolvidas pelos Departamentos de Homicídios brasileiros. Esta interlocução deu origem a um documento único de referência na área, as “Diretrizes Nacionais de Esclarecimento de Homicídios” disponível aqui, produzido em conjunto e a partir do conhecimento de quem atua no dia a dia da investigação de homicídios. Além disso, o Sou da Paz elaborou também um guia com a descrição de boas práticas de investigação e processamento de homicídios, a partir de entrevistas com delegados, delegadas e promotores do Distrito Federal, Paraíba e São Paulo, disponível aqui.
Mais importante destacar, ainda, que a publicação do nosso indicador de esclarecimento nacional de homicídios não é um ataque às Polícias Civis. Ao revés, é um esforço de abertura de diálogo e de parcerias distintas para contribuir para que o país tenha a Polícia Civil que merece: mais profissional, com efetivo adequado, comprometida com resultados, que valorize seus policiais e que preste um serviço de excelência à população.
Por isso, uma vez que, na esteira do lançamento da pesquisa, outros estados sinalizaram que possuem metodologias próprias para a mensuração do esclarecimento de homicídios, decidimos realizar um pedido de dados, via Lei de Acesso à Informação, para levantarmos junto às Secretarias de Segurança Pública das 27 unidades federativas a existência desses indicadores, as metodologias aplicadas e as respectivas séries históricas.
Continuaremos replicando nossa metodologia porque entendemos que a mensuração de esclarecimentos baseada na denúncia do Ministério Público é um indicador socialmente relevante para monitorar a resposta do sistema de justiça frente aos crimes contra a vida, que não se encerra na conclusão da etapa conduzida pela Polícia Civil. A metodologia foi mantida em toda a série histórica, o que confere validade às tendências observadas. Além disso, nossa metodologia traz informações suplementares sobre como o sistema de justiça criminal (TJ e MP, fontes dos dados) tratam essas informações. Vários ainda não conseguem responder, e esse dado é importante para discussão do esclarecimento de homicídios. De toda forma, estamos prontos a dar um passo adiante, oferecendo, por meio desse novo levantamento, mais subsídios para alimentar o desejável debate em torno da mensuração de esclarecimento de homicídios.