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    O Globo | Apreensões de fuzil brasileiro liberado a CACs no governo Bolsonaro explodem em 2022

    18 de novembro de 2022 às 02:14

    Levantamento revela que arma, criada em 2017, chegou ao mercado ilegal e já é usada por traficantes e assaltantes para atirar em policiais

    Reportagem publicada pelo O Globo (clique para acessar o texto original)

    Passava do meio-dia em 28 de outubro, uma sexta-feira, quando policiais do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, em Jacarepaguá, receberam uma denúncia de uma carga roubada de refrigerantes dentro da favela Caixa D’água, no Tanque, na Zona Oeste. Quando chegaram à comunidade — alvo de uma disputa entre traficantes e milicianos há pelo menos um ano — os policiais foram atacados a tiros por um grupo de criminosos e revidaram os disparos. Um homem foi morto e o restante fugiu para um matagal.

    Com o homem, os PMs encontraram drogas e uma arma que passou a fazer parte do arsenal do crime depois que o governo do presidente Jair Bolsonaro liberou, em 2019, sua utilização para Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs): o fuzil nacional T4, calibre 5,56, fabricado pela empresa Taurus.

    Um levantamento do GLOBO em parceria com o Instituto Sou da Paz revela que apreensões de fuzis T4 com criminosos explodiram em 2022 no Rio, em São Paulo e em Minas Gerais. Ao todo, 34 destes modelos foram apreendidos nos três estados até outubro. Nos três anos anteriores somados, foram 15 ao todo. Quase 90% dos T4 recolhidos pela polícia nestes estados desde 2019 estavam com traficantes. Seis foram usados para atacar policiais — como o encontrado na Caixa D’água, que tinha o número de série raspado. Os números são resultado de um cruzamento entre dados das armas apreendidas obtidos via Lei de Acesso à Informação, registros de ocorrência, relatórios internos das polícias e fotografias dos fuzis.

    ‘O nosso T4’

    O T4 foi lançado pela Taurus em 2017 e inicialmente tinha circulação bastante limitada no país. Como é uma arma de calibre restrito, só podia ser vendido para forças de segurança. No entanto, no ano de lançamento, em uma feira de armas, o então pré-candidato à presidência Bolsonaro posou para fotos com o modelo, o chamou de “o nosso T4” e prometeu que, em seu governo, autorizaria a compra por civis. Dito e feito: em 2019, no primeiro ano no cargo, o Exército publicou uma portaria que liberava a aquisição e o uso de fuzis por CACs. E um decreto do presidente no mesmo ano deu permissão a atiradores desportivos a para a compra de até 30 fuzis.

    Após as mudanças, o T4, cujo preço não chega a R$ 20 mil, virou um fenômeno de vendas. Segundo a Taurus, até o início desse ano, quase 60 mil unidades haviam sido vendidas. Desde setembro, entretanto, CACs não podem mais comprar fuzis, porque o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin decidiu que a aquisição de armas de uso restrito só pode ser autorizada “no interesse da segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal”. A decisão, entretanto, não afetou as armas que já fazem parte do acervo dos CACs, que seguem com autorização para usá-las e transportá-las para clubes de tiro.

    Paralelamente ao começo das vendas para civis, T4 passaram a ser apreendidos com criminosos em favelas do Rio. Em dezembro de 2019, a PM apreendeu um modelo com traficantes no Morro do Cavalão, em Niterói. Em outubro de 2021, na Vila Delgado, em Barra Mansa, no Sul Fluminense, agentes do 28º BPM (Volta Redonda) encontraram um T4 enterrado em uma mata, durante uma perseguição a bandidos.

    Um mês antes, após roubarem um carro, criminosos bateram em uma patrulha da PM num acesso da Vila Aliança, em Bangu, na Zona Oeste do Rio, e atacaram os PMs a tiros. Os policiais revidaram. Uma moradora que estendia roupas no varal, um policial e um dos integrantes do bando foram feridos. Um T4 foi apreendido com o assaltante.

    Em São Paulo, criminosos também usam os fuzis. Em dezembro de 2021, PMs trocaram tiros com integrantes de uma quadrilha que estava prestes a invadir uma mansão no Morumbi. Na fuga, os criminosos bateram o carro que usavam e precisaram seguir a pé. No veículo, um T4 foi apreendido.

    No gosto de quadrilhas

    Seis meses depois, também no Morumbi, um policial foi baleado no pé num episódio que terminou com a apreensão de mais um T4. Assaltantes invadiram uma casa e fizeram uma família de refém. PMs foram chamados e assim que chegaram ao local foram atacados pelos bandidos, que fugiram em seguida, em dois carros, em direção à favela vizinha de Paraisópolis. Além do policial, dois suspeitos foram baleados. Um deles tinha um T4.

    A arma parece ter caído no gosto de quadrilhas paulistas especializadas em roubos a residências: em junho, mais um T4 foi apreendido, desta vez pela Polícia Civil, em uma operação contra assaltantes de casas. A arma, com o número de série raspado, foi encontrada no imóvel de um dos integrantes do bando.

    Dos 49 fuzis T4 apreendidos pelas polícias no Rio, em Minas e São Paulo desde 2019, 34 foram adquiridos por CACs acusados de atuar para facções ou comprados com certificados emitidos pelo Exército para laranjas. Em maio, dois fuzis apreendidos em Belo Horizonte pela PM estavam com traficantes que usaram documentos falsos para se registrar como CACs. Em janeiro, a Polícia Civil encontrou 25 armas do modelo na casa do colecionador Vitor Furtado Rebollal Lopes, na Zona Norte do Rio, condenado por fornecer armamento e munição para a maior facção do estado.

    Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas, a possibilidade de compra do T4 por civis está diretamente ligada ao aumento de desvios do armamento para o crime organizado.

    — Antes do governo Bolsonaro, o T4 era restrito a polícias e Forças Armadas. Para os criminosos, na época, havia duas alternativas: corromper policiais ou buscar no mercado internacional e traficar para o Brasil. Os dois caminhos são custosos e o preço de um fuzil 5,56 novo chegava a até R$ 60 mil no mercado ilegal. Hoje, com as mudanças, é possível comprar um T4 por R$ 16 mil e receber em casa. Para um criminoso, é só usar documentos falsos ou comprar em nome de laranjas. As mudanças feitas pelo governo na legislação sobre armas, claramente sem nenhuma avaliação de impacto, beneficiam diretamente o crime organizado — avalia Langeani.

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