Aprimorar o sistema socioeducativo, garantindo que ajude a interromper a trajetória do adolescente na prática delitiva, é uma das tarefas mais importantes que o País tem diante de si
Nascido em 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que esta semana completa 27 anos, veio como um importante marco da retomada do período democrático posterior à Ditadura Militar no Brasil. O ECA representa um divisor de águas na garantia da proteção dos direitos de crianças e adolescentes: antes dele, era vigente o Código de Menores, de 1927, uma lei para o controle social da pobreza, pois não possuía critérios claros para o aprisionamento de crianças e adolescentes, nem mesmo o direito garantido à sua defesa legal.
Fruto da criação democrática, o ECA estabelece responsabilidades compartilhadas no tratamento à criança e ao adolescente, principalmente por reconhecê-los como sujeitos de direitos e por dar prioridade absoluta às políticas públicas, entendendo que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (Art.4ª).
Após 27 anos, sua implementação ainda vem ocorrendo de forma paulatina, mas também é possível a constatação de avanços. Entre eles, podem ser destacados: a melhoria de qualidade de vida da população infanto-juvenil, como a redução da mortalidade infantil; a universalização do acesso à educação formal; a diminuição significativa do trabalho infantil; a normatização do trabalho do aprendiz; o alojamento conjunto de recém-nascidos e suas mães; a regulamentação da adoção; a expansão dos Conselhos Tutelares; o fortalecimento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e o reordenamento do sistema de atendimento socioeducativo.
Mas, há desafios e ameaças de retrocessos, especialmente no que se refere ao adolescente autor de ato infracional. Não há, ainda, acesso universal às políticas públicas de qualidade que permitam a superação das desigualdades e a valorização da diversidade cultural, religiosa, geracional, de orientação sexual e de nacionalidade. Assim, ainda que o balanço tenha vários aspectos positivos, o ECA tem sido alvo de ameaças, muitas vezes motivadas pela falta de informação ou por distorções, que apontam para um retrocesso em relação às conquistas históricas dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada. É o caso, por exemplo, das manifestações contrárias à proibição dos castigos corporais, a proposta de redução da maioridade penal e a discussão sobre o aumento do tempo de internação.
No que se refere às medidas socioeducativas, um avanço importante foi o adolescente deixar de ser submetido às decisões arbitrárias dos juízes, tal como no antigo Código de Menores, e passar a ser tratado como pessoa em condição especial de desenvolvimento. Outro avanço trazido pelo Estatuto é a questão da legalidade. Antes da sanção desta lei, prevalecia a chamada doutrina da situação irregular, que autorizava a internação dos adolescentes, mesmo sem ter havido qualquer delito. A partir de 1990, o adolescente somente pode ser submetido a uma medida socioeducativa se houver comprovação da autoria e da materialidade do ato infracional. Além disso, a questão da proporcionalidade é outro ponto que merece destaque. Isto é, a responsabilização deve ser proporcional ao ato infracional cometido, e a internação só deve ser aplicada para os atos mais graves, como medida de último recurso, a ser cumprida em estabelecimento educacional.
A punição não tem demonstrado gerar bons frutos para uma sociedade segura e igualitária; desta forma, as medidas socioeducativas em meio aberto oferecem as oportunidades de ressarcimento dos direitos por parte do Estado. Nela, o adolescente pode aprender alguma habilidade, despertar algum interesse, conhecer algo novo sobre si, encontrar pessoas da sua comunidade que o acolham e acompanhem. Pode criar laços afetivos importantes, que são as pessoas que o adolescente poderá carregar por sua vida e ter como referência para novos projetos de vida desvinculados do mundo do crime. Desse ponto de vista, a violência ganha um caráter relacional e social. Em todo esse contexto, o desafio passa pelo fortalecimento das medidas socioeducativas.
Além disso, trabalhando a partir e dentro de seu território de moradia, é possível entender a infração cometida pelo adolescente relacionada a um contexto maior que sua condição individual: o ato infracional pode ser uma resposta à uma condição degradante de vida, à experiência de indignidade que o adolescente vive desde seu nascimento, às restrições que sofre – que, é importante lembrar, podem ser além da financeira -, ou podem ser, ainda, um modo aprendido de responder ao mundo a partir das relações e das situações que teve enquanto experiências.
Em contrapartida, tramitam inúmeros projetos de lei com vistas ao endurecimento penal, ampliando o potencial de encarceramento do Estado. Com isso, o desejado é que venham muitos outros aniversários do ECA e que sejam capazes de estimular a reflexão e o debate sobre um projeto de sociedade em que as crianças e adolescentes possam ter cada vez mais seus direitos assegurados. Aprimorar o sistema socioeducativo, garantindo que ajude a interromper a trajetória do adolescente na prática delitiva, é uma das tarefas mais importantes que o País tem diante de si.
Beatriz Saks e Danielle Tsuchida, coordenadoras de projetos sociais do Instituto Sou da Paz