Ainda há tempo para corrigir erros no novo regulamento a ser publicado
Artigo escrito pela diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, e pelo gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, publicado pela Folha de S.Paulo (clique para acessar o texto original)
A notícia de que o ex-deputado Roberto Jefferson comprou legalmente armas e munições (incluindo o fuzil com que tentou matar três policiais federais) com seu registro de atirador esportivo enquanto estava no presídio de Bangu e em prisão domiciliar, publicada no jornal O Globo, talvez seja o mais emblemático símbolo da incapacidade de o Exército Brasileiro oferecer uma fiscalização efetiva neste campo.
Jefferson pregava o ataque às instituições e o apoio a um golpe contra os resultados das urnas nas eleições de 2022. O mesmo fazia George Washington, atirador esportivo preso em dezembro com um arsenal que pretendia distribuir no acampamento em frente ao quartel do Exército, além de explodir um caminhão com combustível no aeroporto de Brasília.
Frente a esses e outros constrangimentos, como ter integrantes da ativa pegos em conversas sobre conspirações golpistas, o Exército tem se esforçado em transmitir uma mensagem de que é uma instituição que serve ao Estado brasileiro (e não a governos ou políticos) e que defende interesses públicos. Mas não é que se vê quando o prisma é o do controle de armas e munições.
Ainda em maio de 2019, a Força concordou com uma mudança que concedia porte de armas a várias categorias por decreto e ampliava em quatro vezes a potência de armas liberadas ao cidadão comum (incluindo calibres 9 milímetros e ponto 40, usadas pelas forças de segurança). Além disso, autorizava a atiradores esportivos até 60 armas, o que, combinado com uma portaria do Comando Logístico do mesmo ano, permitiu que, entre estas, estivessem incluídos fuzis.
Ao buscar nos documentos preparatórios alguma análise técnica que justificasse tal liberação para um atirador esportivo, incluindo iniciantes, nada foi encontrado. A prisão em janeiro de 2022 do atirador esportivo Vitor Rebollal com 54 armas, dentre as quais 25 fuzis de mesmo modelo e calibre, ajudou a ilustrar quem estava se beneficiando com as novas regras. A polícia fluminense afirma que ele revendia ao Comando Vermelho o arsenal que obtinha legalmente.
Já em 2020, durante a pandemia de Covid-19, vimos Jair Bolsonaro ordenar de sua conta no Twitter a revogação de portarias que melhoravam a marcação e rastreabilidade de armas e munições e que ajudariam a investigar crimes e prevenir desvios e o Exército acatar prontamente e, em menos de um dia, revogá-las. Chamado a esclarecer pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a Força não possuía uma única folha de argumentação técnica ou jurídica anexada ao processo previamente à revogação.
Alguns dias depois, uma nova portaria para ampliar a cota de munições que cada civil poderia comprar (de 200 para 600 por ano) foi assinada após o chefe do Executivo bradar em reunião ministerial: “É por isso que quero todo mundo armado”. Documentos do processo evidenciaram a pressão para a edição da portaria. Neles, fica claro que a análise técnica do Exército foi dispensada em prol de uma aprovação célere, cuja formalidade foi substituída por uma mensagem de três linhas de um general exonerado, transmitida do seu email pessoal. Felizmente, a Justiça, com base na precariedade da tramitação, decidiu anular esse aumento na cota de munições.
Vários outros regulamentos do governo de Jair Bolsonaro foram anulados pelo Supremo Tribunal Federal ou revogados por um decreto inicial da atual gestão presidencial em janeiro. Mas os efeitos dessa política não deixarão o Brasil tão rapidamente. As pistolas 9 mm, que fizeram a alegria da indústria após a liberação a civis, começaram a inundar o mercado ilegal. Na capital federal, de onde será assinado o novo regulamento definitivo para armas e munições, a apreensão pelas polícias desse modelo mais potente saiu de 62 em 2018 (quando a arma era restrita) para 325 em 2022 —era 3% das apreendidas, mas fechou 2022 sendo 23% das apreensões totais.
O Exército poderia ter previsto tal efeito antes de aceitar as mudanças ordenadas de forma irresponsável por Bolsonaro. Ainda é tempo de corrigir esses erros e colocar a preservação da vida e auxílio das instituições policiais como eixo central do novo regulamento que está para ser publicado.