Sob Tarcísio de Freitas, letalidade aumentou 8,6% no primeiro quadrimestre de 2023; para pesquisador do Sou da Paz, gestão prioriza reduzir crimes patrimoniais enquanto mortes pelas polícias crescem
Reportagem feita pela Ponte Jornalismo (clique para acessar o texto original)
As polícias Civil e Militar do estado de São Paulo mataram uma pessoa por dia ao longo dos quatro primeiros meses do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Foram 151 vítimas do Estado contabilizadas entre janeiro e abril deste ano, o que representou um aumento de 8,6% em comparação ao primeiro quadrimestre do ano passado, quando as duas polícias mataram 139 pessoas.
O ajudante geral Luiz Carlos Gil de Santana, 20 anos, foi uma delas. O rapaz morreu em 1º de abril, após passar 16 dias internado por ter sido baleado nas costas e no ombro durante uma perseguição policial na comunidade da Serra, na zona oeste da capital. Em seus últimos dias, o jovem foi algemado ao leito do hospital. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil, já que a família denuncia que os policiais dificultaram o socorro quando ele foi atingido por estar em uma moto roubada.
Para Rafael Rocha, coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, o índice mostra que o governo estadual vem consolidando a perspectiva de que a redução da letalidade policial não é uma prioridade, algo que já vem sendo criticado mês a mês devido às declarações do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite.
“A letalidade policial era um dos grandes temas que a gente tinha em 2019, em 2020, em 2021 tivemos a redução, e a discussão que estava tendo era se o Tarcísio iria manter ou não as câmeras e isso foi se esvaindo”, critica Rafael.
“O que nos parece é que o debate das câmeras e da letalidade acabou perdendo espaço para os crimes patrimoniais no centro da cidade de São Paulo”, afirma Rafael, em referência ao crescimento de roubos e furtos nessa região e as operações que vêm sendo realizadas na “Cracolândia”, como é conhecida pejorativamente a cena aberta de uso e venda de drogas que se pulverizou nessa área.
O próprio governo estadual passou a divulgar dados específicos de crimes que ocorrem nesse entorno, com base em duas das 10 delegacias que compõem o centro da capital paulista.
O especialista do Sou da Paz avalia que essas mortes “acendem um sinal amarelo”, especialmente após o índice ter reduzido de forma consistente desde 2021, quando houve a implementação do programa de câmeras nas fardas e a criação das Comissões de Mitigação e Risco na PM, voltadas especificamente para ocorrências que resultam em mortes. Em serviço, as polícias fizeram 110 vítimas fatais neste ano, 11 a mais do que no ano passado. Já na folga, foram 41, uma a mais do que em 2022.
“Os casos das mortes nas folgas têm outra dinâmica, mas durante o serviço é onde o Estado consegue controlar melhor e isso chama a atenção”, afirma. “As câmeras não são uma panaceia, mas o risco é de que esses avanços nos últimos três anos, que são muito significativos, comecem a se esvair. Esse é o grande perigo: não é mais se o governo vai tirar as câmeras, mas de isso perder o efeito”.
Um mecanismo recomendado por especialistas para indicar excessos na letalidade policial é a comparação do número de mortos pela polícia com o o total de homicídios dolosos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que o ideal é a proporção de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos.
Sob qualquer um dos dois critérios, a letalidade policial em São Paulo mostra indícios de excesso. De janeiro a abril de 2023, as mortes pelas polícias representaram 13,2% dos homicídios dolosos. Já no mesmo período do ano passado, a proporção era de 12,4%.
Os homicídios dolosos tiveram estabilidade nos primeiros quatro meses do ano: o número foi de 979, em 2022, para 986, o que significou menos de 1% de diferença. Rafael Rocha, do Sou da Paz, aponta que é preciso apurar as dinâmicas que têm causado esses crimes em razão das disputas e ações do crime organizado.
Outra variável para verificar se as mortes pelas polícias são consideradas excessivas ou não é a comparação com a vitimização policial, ou seja, as mortes de policiais. Até o momento, contudo, as Corregedorias da PM e da Polícia Civil não divulgaram os dados detalhados de abril.
Governo anuncia revisão de dados de 2022
Em relação aos crimes patrimoniais, bandeira que tem sido destaque na gestão atual, a Secretaria de Segurança Pública anunciou que revisaria as estatísticas criminais divulgadas pelo governo anterior, sob o comando de João Doria e depois de Rodrigo Garcia (PSDB), porque afirma ter encontrado “inconsistências” nos dados de furtos e roubos referentes a abril de 2022.
A nota foi publicada pela pasta às 23h33 desta quinta-feira (25) quando os dados já haviam sido lançados e alguns deles antecipados via releases pela assessoria. Nesta sexta-feira (26), a secretaria publicou resolução no Diário Oficial do Estado sobre a criação de um grupo de trabalho, formado exclusivamente por representantes das polícias, para fazer essa revisão dos dados de 2022, em um prazo máximo de 35 dias.
Já durante a tarde, a assessoria informou que os indicadores retificados foram de estupro (total e de vulnerável), furto (total e de veículo), roubo (total e de veículo). Com exceção dos casos de estupro, que aumentaram de abril de 2022 para abril de 2023 em 11%, as variações de furto e roubo para o mesmo período indicaram queda após as supostas retificações.
Não houve mudanças nos indicadores de crimes contra a vida nem de letalidade policial (que não é oficialmente considerada crime, porque o governo presume que seus agentes mataram dentro da lei, em legítima defesa). Contudo, Rafael Rocha aponta que outros setores deveriam participar dessa auditoria. “O esforço para melhorar a transparência e a qualidade do dado é bem vindo, mas isso tem que ser discutido com a sociedade”, afirma.
“Chama a atenção que essa revisão veio nos crimes justamente que têm repercutido muito na opinião pública, porque o recorde de casos de estupro registrado no primeiro trimestre, da série histórica, não é nem comentado por essa gestão”, critica, ao mencionar que esse tipo de crime atingiu o maior índice de janeiro a março desde 1996, quando a SSP passou a sistematizar as estatísticas, e continuou crescendo em abril.
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre os dados de letalidade policial e o anúncio de retificação de registros criminais. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota:
A SSP esclarece que a metodologia (fundamentada em métricas internacionais e adotada pela OMS e UNODC, por exemplo) não recomenda somar ocorrências envolvendo policiais de folga e de serviço. São dinâmicas diferentes. Bimestralmente, uma comissão formada por representantes da SSP, Ministério Público, Defensoria Pública, Instituto Sou da Paz, Núcleo de estudos da violência da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública se reúne para avaliar dados referentes à letalidade.
Além disso, em relação aos procedimentos e protocolos de prevenção, monitoramento e controle, a SSP reitera que todos os casos de letalidade policial são investigados pelas polícias e encaminhados ao Ministério Público e Poder Judiciário.
No primeiro quadrimestre desse ano, foram presos mais de 63 mil criminosos, sendo que 151 morreram em confrontos durante essas prisões. A opção do infrator pelo confronto é apontada como uma das principais causas das mortes.