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    Opinião | Nexo | A urgência da democratização da segurança pública

    26 de maio de 2023 às 03:09

    Dever do Estado e responsabilidade de todos, área foi renegada a ‘caso de polícia’ pela constituinte após trauma coletivo da ditadura imposta em 1964

    Artigo escrito pelo gerente de Advocacy do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, publicado pelo Nexo (clique para acessar o texto original)

    O sistema universal de saúde, inaugurado pela carta de 1988, figura entre os mais sofisticados e solidários modelos jamais construídos. Foi este o sistema que fez o país ser uma referência mundial em programas de imunização, na organização de transplantes de órgãos e no modelo pioneiro e revolucionário de atendimento à população soropositiva. A Previdência Social, desafio unânime em qualquer modelo social que se queira solidário, representa bem o modelo de bem estar social com que sonhou nosso constituinte, apesar de suas assimetrias. A educação, esperança e flagelo nacional, foi revolucionada pelo pacto federativo que a Carta Magna desenha. Se ainda estamos longe do ideal, é importante lembrar que a velha escola pública, de saudosa qualidade, só atendia à Casa-Grande. A universalização do ensino é obra do pacto constitucional de 1988.

    Mas, neste empreendimento civilizatório e democrático notável, que pôs o necessário fim às tragédias conduzidas como política pelo odioso regime militar imposto em 1964, algo ficou em segundo plano. Curiosamente também, entre todos os direitos sociais, é o mais ineficiente de ser efetivado fora do pacto nacional. A educação pública não é incompatível com a educação privada. O sistema universal de saúde e a previdência social podem conviver em profunda harmonia com seus paralelos privados. A segurança não é assim. Em que pese guaritas, blindagens, escoltas e alarmes, segurança é condição essencial da existência humana.

    Se na saúde ou educação temos pistas e razões para a esperança, com a segurança pública invocamos o apocalipse. Forjamos um modelo de guerra interna, onde a noção de segurança é fuzil na mão e vagabundo no chão. A responsabilidade de todos é verídica, pois somos nós os autores da catástrofe, mas o Estado exerce seu dever com ferro, aço e caveirão. Em nome da saúde pública lutamos contra drogas executando muito mais gente que jamais morreria pelo seu simples consumo. Em nome da ordem pública, ajoelhamos crianças no chão da sala na hora do jantar para desviar de tiros de fuzil. Atônitas, mães testemunham o poder infernal das armas de fogo. Mas as vagas do necrotério já estão reservadas: segundo o Atlas da Violência, de 2008 a 2018, o número de homicídios de pessoas negras no país aumentou 11,5%, já entre brancos caiu 12,9%. Se precisa desenhar, quer dizer que você ainda está vivo.

    SE NA SAÚDE OU EDUCAÇÃO TEMOS PISTAS E RAZÕES PARA A ESPERANÇA, COM A SEGURANÇA PÚBLICA INVOCAMOS O APOCALIPSE

    Qual maldição se abateu sobre a bem-intencionada constituinte que nos levou a esta miséria? Uma miséria de 800 mil detentos que deram origem a quase 100 facções criminosas?

    No campo político, entre 2010 e 2022, o número de deputados policiais ou militares das FFAA (Forças Armadas) eleitos na Câmara dos Deputados aumentou de 4 para 44, um salto de 1100%. Se não há qualquer crítica à legítima busca por representação política de qualquer categoria profissional, há funções públicas – fundamentalmente ligadas ao uso da força pelo Estado – que devem ser protegidas de ideologias. Política, a não ser no fascismo, não se faz com armas. Ou a polícia é legalista ou ela é política. Conhecemos o modelo. Da gestapo à guarda revolucionária iraniana, passando pelo DOI-CODI, este é o caminho maldito.

    O mais recente processo de politização das forças policiais é um fenômeno complexo que envolve o crescimento da participação policial nas eleições, a espetacularização da segurança pública, milícias, greves ilegais, culto a armas e abuso de poder contra adversários políticos. No Sou da Paz, damos a este fenômeno o nome de policialismo, um tipo de participação anômala de policiais em atividades alheias a suas missões institucionais.

    Se as eleições de 2022 são favas contadas e o país sobreviveu à tentativa de golpe de 8 de janeiro, esta é a oportunidade imperdível para que as forças democráticas brasileiras compreendam a urgência do fortalecimento da polícia e da melhoria da prestação de serviços pelos policiais. Para isso, temos que estabelecer pontes desde já com todos aqueles setores policiais comprometidos com a democracia e com o cumprimento do estrito dever legal. É preciso separar o joio do trigo e compreender que policiais também são trabalhadores que sofrem com muitas das dificuldades que enfrentam a maior parte dos brasileiros: baixos salários, condições inadequadas de trabalho, pouca qualificação profissional e falta de reconhecimento profissional. Este arremedo institucional se apoia numa produtividade policial super-representada por flagrantes, que em geral se confirmam em ocorrências dos “crimes de rua”. Justamente assaltos e o varejo de drogas. Isso não é segurança e ainda menos direito social.

    “A Nação quer mudar, a Nação deve mudar”, este é o leitmotif constitucional. Que a derrota eleitoral do projeto autoritário de Bolsonaro seja a força motriz que leve o Brasil a democratizar suas polícias e a segurança pública de forma geral como guia a lição de Julio César Strassera: “nos cabe a responsabilidade de prover a paz, não pelo esquecimento, mas pela memória; não pela violência, mas pela justiça.”

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