Número de revólveres, pistolas, espingardas e fuzis nas mãos de CACs locais aumenta 700% em quatro anos. Escassez da presença do Estado e disputas por terras e riquezas naturais tornam situação crítica
Reportagem publicada pelo Nexo(clique para acessar o texto original)
De 2018 a 2022, o número de armas nas mãos dos CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores) na Amazônia subiu mais de 700%, segundo dados compilados pelo Instituto Igarapé e Sou da Paz e revelados pelo jornal Folha de S.Paulo na quarta-feira (15).
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era o número de armas nas mãos de CACs na região amazônica em 2018
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era o número de armas nas mãos de CACs na região amazônica em 2022
A explosão armamentista tem impactos que vão além do crescimento do número de homicídios na região, onde a presença do Estado é escassa e as dinâmicas de violência envolvem disputas de terras e extração ilegal de recursos naturais.
Neste texto, o Nexo apresenta os números do estudo e analisa os impactos de uma Amazônia armada na vida da população local.
Por que tanta arma
Eleito presidente em 2018, Jair Bolsonaro tomou posse no ano seguinte disposto a cumprir sua promessa de armar a população. Publicou decretos flexibilizando a posse e o porte de revólveres, pistolas, espingardas e até fuzis. Também ampliou a quantidade de munição permitida.
Os CACs foram um dos principais beneficiados. Para virar CAC, há regras e um passo a passo a seguir. O primeiro é obter o certificado de registro, que custa R$ 100. É necessário ser filiado a um clube de tiro e passar por teste psicológico. Toda a documentação necessária está no site do Exército, que é a instituição que fiscaliza os CACs.
No âmbito nacional, o número de armas nas mãos dos caçadores, atiradores desportivos e colecionadores passou de 350.683 em 2018 para mais de 1,2 milhão em 2022, num aumento de 259%.
A evolução dos CACs no brasil
A porcentagem de aumento de CACs em território nacional é impressionante, mas mesmo assim fica longe dos 700% registrados na Amazônia.
a evolução dos cacs na amazônia
O levantamento considerou sete dos nove estados da chamada Amazônia Legal: Pará, Amapá, Maranhão, Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia. Tocantins e Mato Grosso, que também integram a região, foram excluídos do estudo pois pertencem a regiões militares de outros estados que não integram a Amazônia Legal.
“Os CACs são um subterfúgio legal que o ex-presidente utilizou para mudar a lei do armamento no Brasil por decreto, autorizando a compra de até 60 armas por pessoa. Qual esporte você faz com isso? Nenhum”, disse ao Nexo Felippe Angeli, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz.
A relação com homicídios
Os números de homicídios no Brasil vêm caindo desde 2018, devido a uma série de fatores: mudança demográfica — uma população mais velha tende a ser menos violenta. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública também cita programas estaduais voltados para jovens, como o Viva Brasília, no Distrito Federal, e RS Mais Seguro, no Rio Grande do Sul. Outra influência na redução é a diminuição da letalidade policial, puxada por São Paulo, que inseriu câmeras nos uniformes da PM.
Ou seja, a ideia vendida por Bolsonaro de que armar a população deixou o Brasil mais seguro não se sustenta. Na verdade, estudos científicos rigorosos feitos no mundo todo apontam que o aumento de armas gera mais violência e letalidade.
Na contramão dos números nacionais, o Norte do país, onde se concentra a maioria dos estados da Amazônia Legal, vem registrando aumento no número de assassinatos. De acordo com o Anuário 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na média geral, a violência letal na região é 38% superior do que a média nacional.
Segundo o Anuário 2022, a Amazônia Legal é a síntese da violência extrema, com taxas de mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes maiores do que a média nacional.
Mortes Violentas Intencionais em 2021
De acordo com o Fórum, das 30 cidades brasileiras com taxas de mortes violentas intencionais maiores do que 100 mortes a cada 100 mil habitantes, 10 delas estão na Amazônia.
O segundo município mais violento do Brasil, por exemplo, é Jacareacanga, no Pará, com uma taxa de 199,2 mortes violentas intencionais para cada 100 mil habitantes, segundo dados de 2021.
Os impactos para a população
Os conflitos fazem parte da realidade da Amazônia Legal há décadas, a exemplo dos assassinatos do líder seringueiro Chico Mendes em 1988 e da missionária americana Doroty Stang em 2005. A maior quantidade de armas na região, porém, agravam a situação, segundo Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé.
Risso afirma que o aumento dos CACs na Amazônia é preocupante pelas novas dinâmicas dos crimes ambientais, que se tornaram mais violentos e organizados.“A fiscalização dos CACs é muito frágil. Temos visto diversos casos de criminosos que se aproveitam da permissividade para alimentar o crime organizado. A legalidade da arma é transitória. Se a arma é roubada ou desviada, essa é uma arma que vai ao mercado ilegal. Ela nasce legalmente, mas ao longo desse caminho, cai na criminalidade”, disse ela ao Nexo.
20%
dos assassinatos de ativistas ambientais no mundo na última década ocorreram no Brasil, segundo relatório da organização britânica Global Witness, que monitora o tema
Uma pesquisa do Instituto Igarapé que ainda está em andamento, com defensoras de direitos humanos na região, explicita a escalada local da violência. De acordo com Risso, oito de cada dez entrevistados relataram ter sofrido algum tipo de violência.
Casos simbólicos ilustram o clima de violência. Em 2019, o indigenista e ex-servidor da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado com dois tiros na nuca na cidade de Tabatinga, no Amazonas. O crime segue impune e não foi esclarecido pela Polícia Federal do estado.
Em 2022, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram mortos no Vale do Javari, crime que chocou o mundo. Os dois viajavam pela região para que Phillips entrevistasse indígenas e ribeirinhos sobre a situação na região, afetados por atividades ilegais de garimpo, pesca, madeira e tráfico de drogas.
“E não é só violência direta. Mas também o fator de estar em ambientes que eu chamo de criminogênicos, como o garimpo, por exemplo. Antes, execuções eram fenômenos mais isolados. Agora são mais presentes e comuns. Ameaças, recados e a presença da arma em fogo em si leva a um retrocesso e tentativa de silenciamento dessas pessoas”, disse Melina Risso ao Nexo.
Relatório “Ilegalidade e Violência na Amazônia”, do projeto Amazônia 2030, mostra a evolução da violência na região. Se a Amazônia fosse um país, ocuparia o 26° lugar entre as taxas de homicídio mais altas do mundo no fim da década de 1990 (segundo ranking do Health Metrics and Evaluation, da Universidade de Washington). A posição subiu significativamente com o passar dos anos: em 2017, ocuparia o 4° lugar.
O índice de homicídios também cresceu nos municípios pequenos. Em 1991, 41% das mortes na Amazônia Legal eram nessas cidades. No final de 2010, a porcentagem saltou para 50%.
Felippe Angeli, do Instituto Sou da Paz, frisa que a cultura de invasão e conflitos agrários que permeia a região se aproveita do vácuo do Estado na Amazônia para agir. “O crime não tem ideologia, é business. Se tem grana, eles vendem, seja madeira ou ouro ilegal”, disse.
O que se espera agora
O governo Luiz Inácio Lula da Silva começou o mandato em 1° de janeiro com um revogaço na área de armas, revertendo decisões do seu antecessor Caíram, por exemplo, a ampliação do acesso a armas e munições e a retaguarda jurídica que dava aval ao garimpo, inclusive ilegal, na Amazônia.
Em comparação com janeiro de 2022, o registro de armas de fogo caiu 71,5% em janeiro de 2023. “O decreto do novo governo já coloca uma nova condicionante. É como se fizesse um freio de arrumação. Já é um recado importante”, disse Risso.
Angeli afirma que além da revogação das medidas será necessário um conjunto de medidas protetivas e de uma política responsável na cultura de armas. “A circulação de armas gera aumento da letalidade. Na Amazônia, com o caldo de conflito e a ausência de Estado, vira uma terra de ninguém, matando criança de inanição”, disse.
Desde 1° de janeiro de 2023, decreto assinado pelo presidente Lula impôs o recadastramento de armas dos CACs. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, disse em entrevista coletiva na quinta-feira (16) que 68 mil armas já foram recadastradas.
Quem não realizar o recadastramento estará cometendo um crime, falou Dino, pois a arma deixará de ser legal e estará sujeita à apreensão. O Supremo Tribunal Federal decidiu que os decretos de Lula são constitucionais, e suspendeu processos que questionam as medidas do governo na Justiça.