O Brasil precisa avançar no diálogo com as polícias, numa política de controle de armas e na revisão do papel do Exército
Artigo escrito pela diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, publicado pela Open Democracy (clique para acessar o texto original)
Os primeiros dias de 2023 significaram, para os brasileiros, uma mistura de sentimentos, emoções e desafios reais e simbólicos. Os ataques golpistas às sedes do governo, do Congresso Nacional e da Suprema Corte do país, no dia 8 de janeiro, consumaram uma tragédia anunciada. Não foram poucos os alertas e análises, inclusive meus aqui no openDemocracy, sobre a possibilidade concreta de o Brasil ter sua própria versão daquelas cenas vistas logo após as eleições americanas, quando eleitores de Donald Trump invadiram o Capitólio para deslegitimar os resultados.
Como nos EUA de 2020, o Brasil de 2023 também assistiu a milhares de pessoas defendendo os interesses do presidente derrotado, tentando deslegitimar as eleições, o presidente eleito e as principais instituições democráticas do país, incluindo a triste depredação do patrimônio público. Como os leitores do open Democracy sabem, atos violentos, tentativas de rupturas institucionais e ataques “por dentro” desse tipo são algumas das tendências do perigoso extremismo global. Impactam ou são impactados pela agudização do populismo, da polarização violenta e da pós-verdade para conquistar ou manter o poder político por meio da violência nas ruas e da deterioração das instituições democráticas.
Houve, porém, um agravante significativo no Brasil em relação à experiência americana: todos os indícios até aqui levam ao envolvimento das forças de segurança, inclusive das Forças Armadas brasileiras. Desde o anúncio do resultado das eleições, na noite de 30 de outubro de 2022, manifestantes montaram acampamentos em frente a quartéis-generais do Exército, pedindo intervenção militar, com baixo empenho concreto para desmobilizá-los. E, nos ataques do dia 8 de janeiro, houve suspeita de falhas nos serviços de inteligência e possível colaboração da polícia militar do Distrito Federal.
Na primeira entrevista exclusiva que concedeu a uma jornalista do Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou a participação de militares nos atos golpistas. À repórter Natuza Nery, da TV Globo, Lula defendeu o fim da politização das forças de segurança. Na entrevista, o presidente responsabilizou o ex-presidente Jair Bolsonaro pelo estímulo à invasão: “Eu fiquei com a impressão que era o começo de um golpe de Estado. Fiquei com a impressão, inclusive, que o pessoal estava acatando ordem e orientação que o Bolsonaro deu durante muito tempo. Muito tempo ele mandou invadir a Suprema Corte, muito tempo ele desacreditou do Congresso Nacional, muito tempo ele pedia que o povo andasse armado, que isso era democracia.”
Há dois anos, o então presidente Jair Bolsonaro prometeu: “Se não tiver voto impresso em 2022, vamos ter problema pior que os EUA”, início de seu insistente questionamento sobre a credibilidade das urnas eletrônicas usadas no processo eleitoral brasileiro desde 1996, sem nenhuma evidência de fraude ou falha que comprometesse qualquer resultado desde então.
Os momentos seguintes aos ataques de 8 de janeiro foram de grande tensão nas relações entre o Governo Federal e as Forças Armadas, assim como entre o Governo Federal e as forças de segurança do Distrito Federal: o governador e o secretário de Segurança Pública foram afastados e o governo decretou intervenção federal na segurança pública do DF. A ação dos invasores foi toda facilitada pela conivência da polícia militar do Distrito Federal e das próprias Forças Armadas.
O fato é que o então comandante do Exército, general Júlio César Arruda, demonstrou confundir pacificação com bagunça. Não só descumpriu uma ordem do presidente para afastar do Palácio militares alinhados com Bolsonaro como pareceu proteger os grupos bolsonaristas acampados na porta do seu quartel-general pedindo intervenção militar, além de tentar impedir a polícia de prender criminosos em flagrante. Usou até blindados para retardar o cumprimento de ordem judicial emitida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.
O ataque à nossa memória
Os ataques golpistas roubaram muito mais do que a conservação do patrimônio das sedes dos Três Poderes. Roubaram dos brasileiros o direito à memória do que vivemos de maneira inédita na posse do presidente Lula, em 1º de janeiro. Foi um dia potente, tanto nas simbologias quanto na perspectiva concreta de mudança sinalizada ao país. Um novo tempo, um novo ciclo, representados por uma festa bonita e pacífica e que os ataques de 08 de janeiro tentaram apagar.
Mas a reação foi rápida. Enquanto negociava com as forças militares, o presidente se reuniu no dia seguinte com governadores no Palácio do Planalto e, depois, convidou os presentes a descer a rampa com ele e caminhar até a sede da Suprema Corte para ver os estragos provocados pelos manifestantes golpistas. Foi outra cena bonita e marcante, um gesto simbólico de coalizão entre forças políticas diferentes, incluindo parlamentares, ministros da Suprema Corte e membros do Poder Executivo.
A agenda com as forças de segurança
A recomposição da imagem foi bem-sucedida. Mas os episódios deixam lições relevantes que não podem ser esquecidas pelo novo governo. Destaco aqui algumas delas, especialmente a relação do campo progressista com as forças de segurança – um relacionamento frágil e historicamente deixado em segundo plano pela esquerda brasileira.
A ação da polícia com base em ideologias políticas pode levar ao abuso de poder e até mesmo representar condutas criminosas
É o momento de buscar o diálogo com as polícias do país, acessando o campo democrático e republicano, capaz de atuar na defesa da democracia, existente nas diferentes instituições policiais. É preciso desenvolver políticas concretas de segurança pública que se comprometam com a profissionalização, a valorização policial e com a gestão do uso da força, sempre envolvendo as polícias e partindo desse diálogo.
No Instituto Sou da Paz, temos realizado estudos sobre a excessiva politização das forças policiais e mostrado que a ação da polícia com base em ideologias políticas pode levar ao abuso de poder e até mesmo representar condutas criminosas, além de afetar visceralmente seu processo de profissionalização e sua própria atuação. As redes sociais deram visibilidade ao trabalho policial e dificultaram aos comandos das corporações o controle sobre a exposição de seus profissionais e das próprias instituições. Isso gerou desafios para as corporações e a própria democracia, como os limites da liberdade de expressão. É um tema que o Brasil precisa discutir mais.
Por outro lado, ainda que não tenha havido o uso de armas de fogo nos atos do dia 8 de janeiro, o risco continua iminente. O Brasil segue com uma população civil mais armada do que nunca. Armas tão ou mais potentes que as das polícias seguem nas mãos de civis, o governo não sabe dizer ao certo quantas armas estão em circulação, nem mesmo quais os tipos e calibres dessas armas, o Exército não fiscaliza os CACs (a sigla em português para colecionadores, atirador desportivo e caçadores) nem os clubes de tiros e armas legais seguem abastecendo o mercado ilegal. O segundo desafio desse governo é, portanto, levar adiante o que iniciou com a publicação do decreto 11.366/23 e avançar na reconstrução de uma política de controle de armas de fogo eficiente e responsável.
A terceira frente necessária diz respeito ao Exército brasileiro. Ainda há uma enorme dificuldade de sabermos o que exatamente aconteceu naquele início de janeiro, embora alguns detalhes tenham se tornado públicos por atuação da imprensa, brasileira e internacional. Apesar da recente troca de comando, há um desafio imenso na retomada das relações com as instituições de Defesa, parcialmente conduzida pela politização excessiva e por grupos fortemente críticos a Lula.
Não são desafios pequenos e que se somam à urgente necessidade de reconstruir as políticas públicas no Brasil, com baixíssimos recursos financeiros. Mas não é hora de esmorecer. Se não avançarmos no diálogo com as polícias, numa política de controle de armas e na revisão efetiva do papel do Exército brasileiro, corremos o risco de nem chegar ao final do governo. E aí é que essas políticas públicas não sairão do papel.