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    NOTÍCIAS

    Nexo | A rápida reversão de medidas de Bolsonaro. Pelo menos no papel

    14 de janeiro de 2023 às 03:48

    Em duas semanas de mandato, Lula desfez ou reorientou políticas públicas relacionadas a armas, meio ambiente e educação. Jeito de governar do antecessor agiliza alterações legais

    Reportagem publicada pelo Nexo (clique para acessar o texto original)

    Em duas semanas de mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu desfazer parte importante do que o ex-presidente Jair Bolsonaro deixou como marca em várias áreas do governo. O petista revogou decretos que tratavam de armas, meio ambiente e educação de crianças com deficiência, entre outros temas, reorientando os rumos das políticas públicas no país.

    Em maio de 2019, no início de seu mandato como presidente, Bolsonaro se vangloriou do poder que tinha para editar decretos, instrumentos normativos que dependem exclusivamente do presidente para entrarem em vigor, sem necessidade de aprovação do Congresso.

    Agora, findo o mandato, esses decretos podem ser rapidamente revogados por Lula, também sem necessidade de avaliação parlamentar. Se as mudanças tivessem ocorrido por leis, aprovadas no Congresso, só poderiam ser derrubadas por lei também, a partir de novo debate entre deputados e senadores.

    “Com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, eu tenho o poder de fazer decreto. Logicamente decretos com fundamento”

    Jair Bolsonaro
    então presidente, a Rodrigo Maia (RJ), que presidia a Câmara filiado ao DEM (atual União Brasil), durante café da manhã com os demais chefes de Poderes

    Neste texto, o Nexo destrincha as causas e os efeitos do modo Bolsonaro de governar, explicando os poderes de um presidente para editar normas, as dificuldades do ex-presidente no Congresso, as estratégias usadas por ele para alterar políticas públicas e o que Lula tem pela frente.

    Os poderes de um presidente para legislar
    Na divisão de competências estabelecida pela Constituição entre os três Poderes, o presidente pode apresentar projetos de lei para o Congresso debater e votar. Com a própria caneta, além disso, ele pode editar decretos para regulamentar (dar maior detalhamento) as leis aprovadas, ou medidas provisórias para estipular novas regras em cenários que, ao menos como previsto no texto constitucional, devem ser de urgência.

    No caso das medidas provisórias, elas entram em vigor assim que publicadas pelo governo, mas perdem a vigência se não forem votadas pelo Congresso em até 60 dias, prorrogáveis por outros 60. Isso ocorreu com Bolsonaro com mais frequência do que com outros presidentes.

    Já os decretos não têm esse prazo de vigência, nem necessariamente precisam ser avaliados pelo Congresso. Os parlamentares, no entanto, podem derrubar os decretos, se considerarem que o presidente extrapolou sua função de regulamentar, inovando na ordem jurídica e criando novos direitos e obrigações.

    Outros mecanismos de controle dos atos editados pelo presidente ocorrem no âmbito judicial. Juízes por todo o país podem ordenar medidas contrárias aos atos se os considerarem inconstitucionais (o chamado “controle difuso de constitucionalidade”, no jargão jurídico), e o Supremo também pode julgar ações que pedem a derrubada dos atos por violarem a Constituição (o chamado “controle concentrado de constitucionalidade”).

    Na visão de Oscar Vilhena, professor titular de direito constitucional da FGV Direito SP, nenhum desses controles operou com vigor sobre os decretos bolsonaristas. No caso do Supremo, ele destaca que, num cenário de “polarização forte e grau de agressividade por parte do Executivo muito forte”, o Supremo teve de “escolher as brigas em que tinha que entrar”. Segundo ele, o tribunal se focou em 2020 em tratar de questões de saúde e, no ano de 2022, em defender o sistema eleitoral.

    “O Congresso não cumpriu a sua função integralmente, o Judiciário foi tímido em muitas circunstâncias e o Supremo foi quem recebeu a maior carga, por vezes sem muita condição de se impor”, afirmou Vilhena ao Nexo.

    Os entraves para mudanças na lei
    Uma série de propostas de Bolsonaro prometidas na campanha eleitoral de 2018 ou elencadas como prioridades do governo ao longo do mandato dependia de alterações em leis em vigor ou até mesmo na Constituição. Dessa forma, só poderiam acontecer com a aprovação do Congresso, seja aprovando nova lei, seja aprovando uma emenda constitucional. Esses eram os casos, por exemplo, das propostas para:

    • Ampliar as garantias para militares em operações de garantia da lei e da ordem (normalmente em regiões urbanas) poderem matar sem que isso configure crime (a chamada ampliação do excludente de ilicitude, nos termos jurídicos)
    • Possibilitar que CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) andem armados (o chamado porte de arma dos CACs)
    • Proibir professores de falar em sala de aula sobre temas que envolvem a política partidária, algo que ficou conhecido como “escola sem partido”
    • Flexibilizar exigências e procedimentos do licenciamento ambiental para obras
    • Regularizar a propriedade de terras que foram griladas (ocupadas irregularmente), um texto que ficou conhecido como “PL da Grilagem”

    Vários desses projetos de Bolsonaro, no entanto, sequer foram discutidos no Congresso. Alguns, como o “escola sem partido”, já tiveram sua inconstitucionalidade apontada quando o Supremo julgou legislações municipais nesse sentido. Outros, como a facilitação do porte de armas, se mostraram impopulares e não avançaram.

    Somado a essas dificuldades, relacionadas ao próprio teor das propostas, a gestão Bolsonaro ainda teve um relacionamento complicado com o Congresso, especialmente com o Senado. Eleito com um discurso antissistema, Bolsonaro começou o governo sem formar uma coalizão de partidos em torno do governo. Ao longo do mandato, ainda provocou diversas crises, bloqueando discussões programáticas para o país.

    Diante do aumento dos processos de impeachment contra si, multiplicados durante a pandemia de covid-19, o então presidente selou sua aliança com o centrão em meados do governo. Mas a aliança se fiou em acordos pulverizados, baseados na liberação de verbas por meio das emendas do relator (o chamado orçamento secreto). Dessa forma, o casamento com o centrão serviu majoritariamente para deixar pedidos de impeachment na gaveta e para aprovar projetos mais emergenciais, como a PEC dos Precatórios – que ajudou a financiar o Auxílio Brasil, em substituição ao Bolsa Família de Lula, às vésperas do ano eleitoral.

    Para além da reforma da Previdência, aprovada em 2019 pela articulação do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, outras reformas estruturais, como a administrativa e a tributária, não avançaram. Marcos legais de setores econômicos, por outro lado, foram aprovados, alterando a regulação de gás e saneamento.

    Segundo levantamento de pesquisadores da FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo, considerando-se as propostas não orçamentárias apresentadas até o penúltimo semestre de cada mandato completo, Bolsonaro foi o presidente que menos sucesso teve no Congresso em relação aos projetos que apresentou. Por outro lado, foi o que mais editou decretos.

    38% dos projetos apresentados pelo governo Bolsonaro ao Congresso foram aprovados; no primeiro governo Lula, para comparação, esse percentual foi de 62,3%

    1.426 decretos foram editados por Bolsonaro até junho de 2022; no primeiro governo Lula, no mesmo período, foram editados 1.230

    As mudanças abaixo da lei
    Dada a inviabilidade de mudanças na lei e na Constituição, o governo Bolsonaro atuou no campo infralegal. Via decretos e outros instrumentos administrativos (que se subordinam às leis), como portarias e instruções normativas, agentes do governo, alegando estarem apenas regulamentando a legislação em vigor, editaram tantas regras em espírito contrário ao que determinavam as leis, que acabaram subvertendo a legislação.

    Esse tipo de procedimento foi o que o professor Oscar Vilhena, junto com outros pesquisadores, chamou de “infralegalismo autoritário”. O conceito, segundo eles, abarca não só as alterações normativas, mas também todo tipo de alteração da dinâmica da administração pública feita abaixo de mudanças na lei. Isso inclui, por exemplo, as ordens informais que Bolsonaro dava em suas lives nas redes sociais, a diminuição da participação pública nas decisões do governo, as restrições orçamentárias sobre diferentes órgãos e a militarização promovida dentro deles.

    O termo “infralegalismo autoritário” adapta ao caso brasileiro, onde as reformas ocorreram por decretos, o “legalismo autocrático” apontado pela academia estrangeira em países autocráticos, como Hungria e Polônia.

    Nesses países, reformas graduais na legislação, com aparência de regularidade, acabaram por subverter um sistema jurídico plenamente democrático. No Brasil, o professor Conrado Hübner Mendes, da USP (Universidade de São Paulo), chamou atenção para o fato de que as normas editadas pelo governo Bolsonaro sequer têm essa aparência de regularidade. “Melhor, portanto, chamá-lo de ‘ilegalismo’ autoritário. Esse processo não instrumentaliza o direito, apenas o arrebenta”, escreveu Hübner Mendes em coluna no jornal Folha de S.Paulo.

    Professor de ciência política e de políticas públicas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Sergio Simoni Júnior destaca que a edição de decretos, além de dar solução à falta de uma base parlamentar forte, serviu também para deixar os atos mais distantes do controle público. “No caso de medidas que poderiam ser mais conflitivas, fazer mudanças por meio de decretos é menos visível do que aprovar leis”, disse Simone Jr. ao Nexo.

    O professor da UFRGS afirmou também que os decretos atingem a “engrenagem” das políticas públicas em seus detalhes, o que é suficiente para um governo que se propõe a desconstruir as políticas existentes, em vez de construir aprimoramentos – como falou expressamente Bolsonaro no início de seu governo.

    “Para pelo menos alguns dos objetivos que o governo anterior [governo Bolsonaro] tinha, bastaria realmente fazer os decretos e desmantelar certas políticas. Não é necessário mudar a lei porque se pode desconstruir o funcionamento da política pública”, disse Simone Jr.

    Vilhena, na linha do que defenderam diversas organizações ao longo do governo Bolsonaro, aponta que esse tipo de atuação é autoritário porque, ao subverter a hierarquia das normas e dar orientações contrárias à lei, “viola o Estado de Direito, usurpa a função legislativa pelo Executivo e vai substantivamente contra os dispositivos constitucionais, como a proteção do meio ambiente, a garantia da saúde etc”.

    O ‘revogaço’ de Lula
    A atuação do governo Bolsonaro, por meio de decretos e outros instrumentos infralegais, facilita a reversão das medidas tomadas pelo governo Lula. “Imagina se essas coisas tivessem sido feitas por emenda à Constituição. Por exemplo, uma emenda dizendo que todos têm direito a portar sua arma para autodefesa. Seria muito difícil hoje conseguir a maioria necessária para derrubar uma emenda como essa”, disse Vilhena.

    Antes mesmo da posse, a equipe de transição de Lula já havia feito uma listagem com sugestões de decretos a serem revogados. Iniciado o mandato, o presidente iniciou o revogaço já no primeiro dia de trabalho. As medidas que caíram promoviam, entre outros pontos:

    • Ampliação do acesso a armas e munições, inclusive de grosso calibre
    • Retaguarda jurídica ao garimpo (inclusive o ilegal, segundo os críticos do texto) na Amazônia
    • Desestímulo ao acesso de pessoas com deficiência a escolas regulares
    • Barreiras à participação social na discussão e elaboração de políticas públicas
    • Processos de privatização de oito estatais
    • Vilhena afirma que, desde que o ministro da Justiça Fernando Lyra, do governo José Sarney (1985-1990), iniciou uma revisão do “entulho autoritário” da ditadura militar, num processo que se intensificou com a promulgação da nova Constituição em 1988, “nunca houve uma necessidade de que o governo que estava entrando fizesse uma revisão tão profunda de medidas administrativas tomadas pelo governo anterior”.

    Segundo o professor da FGV, na transição entre 2002 e 2003 de Fernando Henrique Cardoso para Lula, por exemplo, ainda que o petista falasse numa “herança maldita” recebida do tucano, houve continuidade entre as gestões. “Se olharmos para toda a estrutura administrativa, as secretarias, o SUS [Sistema Único de Saúde], que foi construída no governo Fernando Henrique, o governo Lula não vai alterar nada disso”, afirmou Vilhena.

    Além do ‘revogaço’
    Apesar da facilidade com que decretos editados por Bolsonaro podem ser revogados, o modo de o governo predecessor atuar no campo das políticas públicas também deverá impor uma série de desafios ao governo Lula.

    Um deles, o gerente do Instituto Sou da Paz Bruno Langeani aponta em relação ao campo das armas. Segundo o especialista, o governo Bolsonaro editou tantos textos sobre o tema que criou “um caos jurídico”. “Para além dos excessos e inconstitucionalidades, portanto, as regras ficaram muito pulverizadas. Então para o novo governo não basta revogar esse entulho. Vai ser preciso colocar novas regras no lugar”, disse Langeani ao Nexo em dezembro.

    Simone Jr. destaca que as políticas públicas se tornaram muito pulverizadas inclusive entre estados e municípios brasileiros, já que faltou coordenação por parte da União. “Uma série de estruturas de diálogo e de articulação conjunta entre esses níveis foram desestruturadas, especialmente na área de assistência social, de saúde e mesmo na área de educação”, afirmou.

    Vilhena também destaca a necessidade de o novo governo lidar com as situações jurídicas consolidadas no momento em que os decretos estavam em vigor, com “presunção de legalidade”. No caso das armas liberadas, por exemplo, Langeani afirmou que provavelmente uma campanha de entrega voluntária dessas armas exigirá que o governo ofereça indenizações compatíveis aos valores de mercado dos produtos.

    “O Estado pode recomprar essa arma, reduzir o período de licença, criar uma regra que obrigue a entrega, mas estabeleça o direito a indenização”, afirmou Vilhena. Em outros casos, segundo ele, programas de reparação podem ser necessários para se enfrentar danos já causados. Ele cita como exemplo a negligência com que as comunidades indígenas foram tratadas pelo governo federal durante a pandemia de covid-19.

    “Não basta revogar. Essa é uma das estratégias, mas será necessário reconstruir caminhos por onde o rastro dessa subversão institucional aconteceu. Esse infralegalismo deixa rastros que custarão a ser apagados”, disse Vilhena.

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