O aumento de licenças para posse de armas entre uma população cada vez mais intolerante expõe crianças a um contexto de insegurança e violência
Reportagem publicada pelo Lunetas,(clique para acessar o texto)
Recentemente, o caso da família de uma criança com transtorno do espectro autista vítima de disparos de tiros por arma de fogo, por um membro da própria família incomodado com o choro do menino, ganhou espaço na mídia, evidenciando outros assuntos que precisam ser colocados na mesa, urgentemente.
No dia 30 de julho, em Teresina (PI), Daniel Flauberth Gomes Nunes Leal, 38, motorista por aplicativo que possuía registro de CAC (colecionador, atirador esportivo e caçador) e Felipe Guimarães Martins Holanda, 37, advogado e servidor terceirizado do Tribunal de Justiça, se envolveram em uma briga familiar motivada pelo choro do filho de Felipe, um menino autista de 4 anos. O que se sabe sobre o caso é que, no dia anterior à briga, Daniel havia se irritado com o choro constante do sobrinho. Felipe, portando uma faca em mãos, foi até a casa do cunhado tirar satisfação. Na casa, havia três armas em nome de Daniel. No momento da briga corporal entre os dois, ocorreram disparos, sendo que Daniel foi atingido na cabeça e Felipe na virilha. Juliana, casada com o irmão da esposa de Felipe, que estava na casa no momento, também foi atingida na cabeça. Daniel e Felipe faleceram. Juliana se encontra hospitalizada em estado grave. A polícia ainda investiga a autoria dos disparos.
A vida em sociedade é plural. Com tantas formas de existir no mundo, saber conviver com as diferenças é – entre outros fatores – o que nos garante dias de paz. Dias esses que parecem ser tão poucos, diante de casos diários de racismo, homofobia, feminicídio, capacitismo (discriminação contra pessoas com deficiência), entre outras violências – muitas fatais – iniciadas por intolerância e descontrole emocional de quem as pratica, que se agravam com os discursos e as leis pró-armas.
Andrea Werner, ativista, mãe de criança com autismo e fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, expõe com preocupação o aumento da intolerância no país. Sua percepção baseia-se nas notícias que acompanha, mas também na realidade que conhece a partir do ativismo por uma sociedade inclusiva. “Estamos vivendo muitos retrocessos. Há intolerância contra mulheres, pessoas LGBTQIA+, negras, pessoas com deficiência. Ao lutar pela inclusão escolar de crianças com deficiência, por exemplo, percebo que as escolas regulares já nem se preocupam mais em disfarçar o preconceito”, conta.
A intolerância às diferenças e o discurso pró-armas têm caminhado juntos no Brasil, como percebe Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz. “Vivemos um momento de priorização de liberdades individuais em que o bem-estar coletivo parece estar ficando em segundo lugar”, aponta.
“Existem, em atitudes intolerantes e na defesa das armas, elementos de individualismo e descrença nas políticas públicas”
Tanto Natália quanto Andrea alertam sobre o fato de o Brasil ter figuras públicas promovendo e validando o uso de armas em momentos de conflitos, o que consequentemente legitima a intolerância e flexibiliza a ocorrência de crimes.
Você conhece a Declaração de Princípios sobre a Tolerância?
Este documento, criado pela Unesco em 1995, sugere que a tolerância é uma atitude baseada no reconhecimento dos direitos que garantem dignidade ao outro. Na declaração, aborda-se a pluralidade, as muitas formas de existir no mundo e a “harmonia na diferença”. ok
Quem é o alvo em uma sociedade armada?
Dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) revelam que o número de registros de armas de fogo saltou de 637 mil, em 2017, para 1,2 milhão, ao final de 2020. Na direção oposta, no primeiro ano de lançamento do Estatuto do Desarmamento (de 2004 a 2005), os brasileiros entregaram 440 mil armas para serem destruídas. O índice acompanha o aumento de licenças de armas concedidas ao grupo identificado como CACs (colecionadores, atiradores esportivos e caçadores), que pulou de 167.390 em julho de 2019 para 605.313 em março de 2022, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz e Globo News. Essa categoria é a mesma da qual fazia parte o agressor mencionado no caso que abre esta reportagem.
Natália chama a atenção para o fato de que esse grupo – que já são ao todo 1,25 milhão de pessoas, número maior do que o efetivo de PMs em exercício – tem acesso a grandes quantidades de armas de fogo, muito mais potentes do que outras categorias. “Um atirador esportivo pode comprar 60 armas de fogo, inclusive fuzis, que antes não eram acessíveis a pessoas comuns.” Ela ainda destaca que a fiscalização existente não é compatível com o número de concessões.
“Essas armas podem ir para as mãos de pessoas que as usarão em momentos de descontrole emocional”
A violência cometida por armas, em um país com leis que flexibilizam o acesso a elas, coloca toda a sociedade em risco, especialmente aquelas pessoas mais próximas ao licenciado. “Temos que pensar onde esse armamento é guardado. Ele é guardado em casa. Estamos falando de fuzis e pistolas com alto poder de fogo em casas comuns”, expõe.
Natália ainda questiona a ambiguidade do discurso entre os defensores pró-armas, que dizem lutar por “liberdade”, quando se deveria levar em conta outra palavra: a responsabilidade. “A posse de armas tem que caminhar junto com o senso de responsabilidade. Um portador responsável precisa saber, 24 horas por dia, onde a sua arma está, em que condições ela está, quem está por perto do local onde ela se encontra. Na verdade, a posse de armas não traz liberdade alguma, mas, sim, um imenso peso nas costas.”
Além dos casos envolvendo acidentes de crianças com armas, é inegável que seu fácil acesso também potencializa o uso dentro do ambiente doméstico. Não à toa, a casa é o local de morte com arma de fogo de apenas 11% dos homens, mas de 25% das mulheres vítimas de feminicídio, segundo dados da pesquisa “O papel da arma de fogo na violência contra a mulher”, também do Instituto Sou da Paz. Em uma casa marcada pela violência, as pessoas mais vulneráveis, como mulheres e crianças, especialmente aquelas com deficiência, correm mais riscos de se tornarem vítimas.
“Crianças choram. Crianças autistas choram. Como se não fossem as nossas preocupações, agora também temos que garantir que um atirador esportivo armado até os dentes fique longe dos nossos filhos” – Andrea Werner
Por uma sociedade que acolha as múltiplas infâncias
Há 32 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente nos estimula a melhor conviver com as crianças, criando um ambiente seguro para que se desenvolvam. É importante lembrar que cuidar da criança é responsabilidade compartilhada entre o Estado, os responsáveis pela criança e a sociedade, segundo o artigo 227 da Constituição Federal. Infelizmente, essa responsabilidade compartilhada parece não ter sido internalizada por muitos adultos.
Andrea desabafa sua indignação sobre a ignorância e intolerância que permeiam o comportamento dos adultos em relação ao universo das infâncias. “É natural que uma criança seja imatura e não tenha regulação emocional como um adulto saudável deveria ter”, explica.
“Mas ainda há muitos adultos que tratam crianças como se fossem ‘miniadultos’ e não entendem que a maturidade vem com o passar dos anos”
Dentre as manifestações de emoção comuns da infância está o choro. Ele é uma forma de a criança comunicar suas necessidades, seus incômodos e pode ser ainda mais intenso em crianças com deficiência. Aprender a acolher as emoções e sentimentos das múltiplas infâncias faz parte do convívio em sociedade. Contudo, isso esbarra em adultos que não estão dispostos a exercer o papel que lhes cabe, ou seja, de serem responsáveis por garantir o bem-estar dos pequenos. “Muitos exigem que espaços públicos, como um avião, por exemplo, sejam silenciosos. Isso não faz sentido!”, aponta Andrea.
“Viver em sociedade é saber viver com as particularidades do outro”