Por Paula Ferreira (acesse a matéria publicada pelo jornal O Globo)
Estudiosos apontam que efeito desta política é o contrário ao descrito pelo presidente e que redução de 6,3% nas taxas de mortes violentas poderia ser maior; Brasil é o oitavo país mais violento do mundo
O assassinato de um dirigente municipal do PT de Foz do Iguaçu, no Paraná, por um apoiador do governo, no fim de semana, foi usado pelo presidente Jair Bolsonaro para reforçar o argumento de que a queda nos índices de violência no país se deve ao maior acesso a armas pela população. Mas especialistas apontam que o efeito desta política é o contrário ao descrito pelo presidente: a redução de 6,3% nas taxas de mortes violentas intencionais registradas no país em 2021 poderia ser ainda maior, caso medidas que facilitaram o acesso às armas não tivessem sido implementadas.
A redução foi informada no fim de junho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na divulgação do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Apesar da queda, o Brasil é o país com maior número absoluto de homicídios do planeta e ocupa a posição de oitavo país mais violento do mundo, de acordo com ranking da UNODC, o escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Pesquisadores que estudam o problema afirmam que a falta de políticas públicas federais impede que a redução da criminalidade seja mais acentuada.
Na madrugada de domingo, o agente penitenciário federal José da Rocha Guaranho, apoiador de Bolsonaro, invadiu a festa de aniversário de 50 anos do guarda municipal Marcelo Arruda, ex-candidato a vice-prefeito de Foz do Iguaçu pelo PT em 2020, e o matou com dois tiros. Arruda comemorava o aniversário em uma festa com decoração que homenageava o PT e o ex-presidente Lula , e antes de morrer, reagiu e também atirou em Guaranho.
Ironia
Diante da repercussão, depois de dizer que rejeita atos violentos de seus apoiadores e as acusações de que suas declarações contra o partido e adversários incitam esse tipo de crime, o presidente aproveitou o episódio para dizer que as mortes violentas caíram em seu governo. E relacionou a tendência à sua defesa de facilitação da compra e do uso de armas pela população. “O incrível caso do governo que estimula a violência reduzindo-a para o menor índice em dez anos”, ironizou o presidente ontem, em uma publicação nas redes sociais.
Segundo o anuário de segurança pública, o número de mortes violentas passou de 23,8 a cada 100 mil habitantes para 22, 3 a cada 100 mil, de 2020 para 2021. Ao mesmo tempo, o número de armas nas mãos de caçadores, atiradores e colecionadores aumentou 79%, impulsionado principalmente por decretos do atual governo que facilitaram o acesso.
— A taxa de homicídios vem caindo no Brasil por três motivos: implantação de políticas efetivas em vários estados na década de 2010; a maior transição demográfica, rumo ao envelhecimento da população; e o armistício na grande guerra do narcotráfico do Alto do Juruá-Solimões e em capitais nordestinas, a partir de 2018. Se não fosse o armamentismo irresponsável, negacionista e trágico do governo Bolsonaro, a taxa de homicídio teria caído muito mais. O armamentismo diminuiu em parte a maré a favor da redução de homicídios no Brasil — afirma o pesquisador e diretor-presidente do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), Daniel Cerqueira.
Bolsonaro costuma citar a política armamentista dos Estados Unidos, onde, em alguns estados, é possível comprar armas até mesmo em supermercados, como um modelo a ser seguido no Brasil. Pesquisadores americanos, no entanto, têm demonstrado a falência da política armamentista adotada no país. Um artigo publicado em 2019 por cientistas da Universidade Stanford, por exemplo, demonstrou que, após a flexibilização do porte de armas, o índice de crimes violentos aumentou. De acordo com a pesquisa, ao longo de dez anos, a flexibilização das leis sobre o tema levou a um aumento de 13% a 15% na taxa de crimes violentos.
Sem relação
O pesquisador Thomas Conti, do Insper, analisou dez estudos ao redor do mundo que tratam da relação entre o aumento do número de armas nas mãos da população e os índice de violência, publicados entre 2012 e 2017. A conclusão foi que 90% dos trabalhos trazem dados que derrubam a tese de que mais armas resultam em menos crimes.
— Esse caso (do assassinato do petista em Foz do Iguaçu) derruba um pouco o mito de que o cidadão com a arma legalizada não comete crime. Há um risco muito grande, criado por esse governo, que vai em duas linhas: temos o presidente usando um discurso violento contra opositores, tratando como inimigo. O presidente sempre alega que é uma expressão no sentido figurado, mas a gente sabe que muitas pessoas que ouvem entendem isso de uma outra forma. E o segundo problema é o número de armas em circulação. Temos centenas de milhares de armas que não existiam e que agora estão nas mãos de civis — alerta Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.
Langeani cobra políticas do governo federal direcionadas à estrutura de segurança pública que poderiam reforçar a tendência de redução de mortes violentas intencionais:
— Se pensarmos no que Bolsonaro fez em termos de fortalecimento da polícia, de projetos de prevenção de homicídios, ou para ajudar a polícia a esclarecer homicídios, nada foi feito. É uma tentativa desesperada do governo de buscar crédito por algo que ele não contribuiu. Muito pelo contrário, há uma série de estudos mostrando que essa flexibilização dificulta a redução de homicídios.
Dados regionais a respeito do aumento da circulação de armas dão uma mostra do problema. Apenas no caso do Amazonas, de 2020 para 2021, houve um aumento de cerca de 72% nos registros de arma. Ao mesmo tempo, a quantidade de homicídios dolosos no estado cresceu 53,5%.
Uma pesquisa do Sou da Paz mostra ainda que muitas vezes as armas registradas legalmente vão parar nas mãos do crime organizado. O estudo analisou 24 mil boletins de ocorrência do estado de São Paulo e verificou que, entre 2011 e 2020, mais de 33 mil armas foram desviadas de civis, empresas, agentes de segurança para criminosos.
Número pode ser maior
A análise destaca que o número pode ser ainda maior, já que não há punição para quem não notifica o desvio da arma. A pesquisa conclui que o aumento da emissão de registros de arma para CACs durante o governo Bolsonaro pode levar ao aumento do índice de desvios.
O levantamento nos boletins de ocorrência entre 2011 e 2020 mostra que os caçadores, atiradores e colecionadores estão em terceiro lugar no ranking de fontes dos maiores desvios de armas, ficando atrás apenas de empresas de segurança privada e repartições públicas. Nesse período, 269 armas foram desviadas de residências de CACs.
O relatório destaca que esses desvios geram uma preocupação a mais, já que a categoria tem acesso a armas de tipo e calibre restritos, o que viabiliza desvio de armas mais potentes.
“O governo brasileiro investe muito pouco em conhecer melhor a fonte das armas de fogo usadas em crimes e, especialmente, o caminho que elas percorrem até chegar aos perpetradores”, conclui o estudo do Sou da Paz.
O GLOBO questionou o Ministério da Justiça e Segurança Pública a respeito da queda de homicídios e das críticas à ausência de uma política nacional de segurança pública, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.