Por Jeniffer Mendonça (acesse a matéria completa publicada pelo jornal Ponte)
Há seis meses, comando-geral determinou que policiais militares não publiquem conteúdo que remeta à corporação nem o monetize; Ponte localizou perfis em redes sociais que descumprem norma
O ponto de vista é do policial militar conduzindo uma motocicleta atrás de um homem em outro veículo, que cai e sai correndo. Vestido de blusa vermelha e calça jeans, o homem negro corre por vielas enquanto o policial vai atrás e grita “para, para, para, tio!”. As imagens, retiradas da câmera acoplada à farda, vêm acompanhada de trilha sonora de perseguição. Em determinado momento, em que alcança o homem e parece ter uma luta corporal entre os dois, o policial torce o pé e retorna. O homem foge. Sabemos disso porque essa informação aparece em uma legenda acompanhada dos dizeres “ele não desiste e retoma a missão”. O vídeo, que data de 10 de junho, foi publicado em 1º de julho no canal oficial no YouTube da Polícia Militar do Estado de São Paulo, mas também pode ser encontrado no perfil do Instagram do soldado Felipe da Silva Joaquim, que conta com mais de 122 mil seguidores.
Apesar de a corporação ter proibido seus pares de publicar conteúdo que remeta à PM em redes sociais por meio da diretriz PM3-006/02/21, vigente desde janeiro, Felipe e tantos outros policiais cujos perfis abertos a reportagem localizou seguem fazendo postagens que vão contra as regras previstas. Ou seja, o texto estabelece que não podem informar vínculo com a corporação, publicar brasões, insígnias, instalações da instituição, ocorrências, fardamento, armas, viaturas, manifestações de cunho político-partidário, reivindicatório ou que deprecie órgãos públicos, nem monetizar publicações com conteúdo relacionado à Polícia Militar. A exceção é para divulgação de eventos, solenidades, formaturas ou casamentos com uso de farda e campanhas humanitárias, solidárias ou filantrópicas com participação da PM e que tenha sido aprovada pela corporação.
A norma foi redigida pelo então comandante-geral Fernando Alencar Medeiros, em dezembro de 2021, cerca de quatro meses depois que o coronel Aleksander Toaldo Lacerda, então a frente do Comando de Policiamento do Interior 7 (CPI-7), em Sorocaba, convocou ato para a manifestação de 7 de setembro daquele ano e fez postagens em que chamou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), de “covarde”, o então governador João Doria (PSDB) de “cepa indiana” e disse que o deputado Rodrigo Maia (União Brasil – RJ) seria beneficiário de um esquema “mafioso”.
Ele foi afastado do comando após reportagem do jornal O Estado de S. Paulo revelar o caso, já que o Regulamento Disciplinar (RDPM) veda a policiais da ativa “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos, militares ou policiais, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, quando devidamente autorizado” e convocar ou participar de manifestações de caráter político-partidárias. O Código Penal Militar também tem como crime, em seu artigo 166, “publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo”, com pena de detenção de dois meses a um ano. Atualmente, as redes sociais do coronel estão privadas, sem informações que remetam à PM, e ele passou a ser diretor de Logística da corporação, departamento responsável por fiscalizar e fornecer suprimentos e serviços à Polícia Militar. A Ponte perguntou à assessoria sobre a apuração do caso, mas não houve resposta.
O coronel reformado e professor do Centro de Altos Estudos e Segurança da PM paulista José Vicente da Silva Filho entende, porém, que a norma surgiu por outros motivos. “Essa diretriz foi publicada porque estavam crescendo muitos abusos, pessoas expondo seu trabalho, sua imagem, seus companheiros, pessoas envolvidas em ocorrências, e que estava criando um constrangimento muito grande na corporação”, aponta. Para ele, a cultura influencer, com monetização de conteúdo e busca de seguidores, acabou entrando em cheio na corporação. “O que estava acontecendo era muita promoção pessoal, então começou uma corrida para se fazer seguidores, se valendo de todo o tipo de artifício, como mostrar seu trabalho, mostrar arma, dizer que é da Rota, que é do batalhão de elite, e a corporação estipulou regras do que não pode”.
O soldado Felipe Joaquim já teve seu nome veiculado pela imprensa em 2020, quando foi gravado agredindo um motoboy negro e depois apresentou na delegacia uma ocorrência totalmente diferente sobre ter sido vítima de um roubo. Na época, a Ponte também tinha denunciado que ele postava vídeos de ocorrências que atuou em um canal do YouTube e fazia divulgação de “parceiros comerciais” ― as postagens foram apagadas logo após a publicação.
Com a diretriz, Felipe adaptou parcialmente seu perfil. Ele chegou até a fazer uma postagem, em 30 de dezembro do ano passado, comunicado a mudança, mas as publicações continuaram. “Graças ao nosso trabalho nas ruas e até mesmo nas postagens, quebramos diversas barreiras com a molecada que tinha outra visão do nosso trabalho. Daqui 19 dias esse Instagram será totalmente modificado, no caso não irá ser postado nada sobre Polícia”, escreveu, acompanhado de uma foto fardado em uma motocicleta. Na época, a corporação deu 20 dias para que as adaptações fossem feitas pelos policiais. Diversas sobre ocorrências foram apagadas, mas algumas se mantém, como a citada na abertura da reportagem. Seu nome de usuário continua utilizando a abreviação “SD”, da palavra “soldado”, o que já contraria a norma por identificá-lo como policial.
José Vicente entende que, ainda que policiais queiram “prestigiar a instituição”, o uso de redes sociais precisa ser regulamentado. “Tem regras que são essenciais: não colocar ocorrências policiais porque muitas delas se tornam processos criminais, acabam expondo pessoas que estão ali sobre responsabilidade funcional, então não pode”, elenca. “Outra anomalia é de estrita promoção pessoal, mostrar que sou o máximo, com caráter nitidamente político, não só para os que são candidatos, mas os que têm preferências e querem usar como ponte a Polícia Militar, criando uma situação constrangedora. A diretriz da PM foi uma preocupação nesse sentido”.
Patrulhamento monetizado
O soldado Aricleiton Barreto, o Ari do Grau, se decreve como “policial militar e youtuber” aos seus mais de 73 mil seguidores no Instagram. Fotos com uso da farda, armas e ocorrências são presentes na rede social de fotos, mas é no canal do YouTube, com mais de 10 mil inscritos, que seus vídeos de patrulhamento vêm somando anúncios publicitários.
Com alcance maior, outro soldado que também teve que se dirigir ao seu público por causa da diretriz é Marcelo Henrique Silva, que atua em Campinas, no interior. O vídeo, intitulado “A verdade sobre o que está acontecendo”, foi postado em 29 de janeiro deste ano no seu canal do YouTube “Sd Marcelo”, com mais de 842 mil inscritos, que tem selo como conta verificada. No decorrer de 8 minutos e 42 segundos, aparecem quatro anúncios, o que indica monetização do conteúdo. O brasão da corporação bordado na camiseta que veste está borrado na imagem. Ele afirma que não está falando mal da instituição e não sabe se vai ter que apagar vídeos antigos, mas que vai continuar com a produção de conteúdo. “Não vou parar, isso só vai me dar mais força para mim, para continuar indo para cima. Eu não quero bater de frente com ninguém”, disse.
Os vídeos de ocorrências monetizados prosseguiram, o mais recente deles publicado em 2 de julho sobre a abordagem a um homem que estaria transportando drogas num carro, com quatro anúncios exibidos. O rosto dele e do outro policial, bem como de uma criança que cumprimenta Marcelo por causa dos vídeos, são borrados, mas a ocorrência é toda filmada por ele. Na descrição, informa que “o conteúdo deste vídeo tem finalidade educativa e documental, nenhuma outra finalidade para este conteúdo está autorizada. O vídeo em questão não é um espaço para glorificar a violência ou promover o ódio”. Em 30 de maio, saiu a publicação no Diário Oficial do Estado apontando que Marcelo se desincompatibilizou das funções para concorrer às eleições de 2022.
Há também policiais militares que sequer tentaram modificar seus perfis. Um deles é o capitão André da Silva Rosa, que atua no 38º Batalhão Metropolitano, mas costuma ostentar sua passagem pelas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa mais letal da PM paulista, que ocorreu entre 2008 a 2013, a começar pelo seu nome de usuário: capitaosilvarosarota. No Instagram, tem mais de 352 mil seguidores. Armas, ocorrências, farda, inúmeras mençoes à PM constam em sua rede.
Em 2020, ele se candidatou ao cargo de vereador de São Paulo nas eleições municipais. Não foi eleito, mas alcançou a fila da suplência pelo DEM e retornou à atividades da corporação. Neste ano, é pré-candidato a deputado federal sob o nome Capitão Silva Rosa. O uso da designação hierárquica (cabo, soldado, capitão etc) para disputa a cargo eletivo é permitido tanto pela diretriz quanto pelo RDPM. Para o presidente da Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do Brasil seção São Paulo (OAB-SP) Antonio Carlos Arruda da Silva, essa exceção é contraditória. “É uma contradição o policial poder usar seu posto para fins político-partidários, mas não pode, por exemplo, utilizar isso para uma manifestação política, social, se não for nos limites estabelecidos pela corporação, ou seja, quem quer fazer uma crítica, está impedido de fazê-la [na ativa sem ser candidato]”, afirma. “Isso fragiliza o uso da norma”.
O coordenador de advocacy do Instituto Sou da Paz Felippe Angeli concorda, especialmente porque o período de desincompatibilização das funções acontece três meses antes da eleição. “O cara não é um robô em que deixa de ser policial, principalmente em uma quarentena tão curta de três meses para se afastar, disputando uma eleição, mesmo ganhando ou perdendo. Ele se filia a partido, usa redes sociais, que é fundamental para uma eleição, e vai voltar para a tropa sem nenhuma influência desse processo? Impossível. Isso só aumenta a politização da tropa”, critica.
Inclusive, antes mesmo da redação da diretriz, o capitão André Rosa foi absolvido do crime militar de publicação ou crítica indevida em dezembro do ano passado. O Ministério Público Militar apontou que ele criticou os governos estaduais da Bahia e de São Paulo, ao dizer que só não compareceu ao ato de 7 de setembro por causa do “trabalho no quartel”, e também sobre o caso do PM Wesley Soares, morto por agentes do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) baiano, após atirar para o alto.
No vídeo, em trecho destacado pelo MP, André disse: “então, desculpa, primeiro como ser humano e depois como profissional e como comandante, que eu vejo que a nossa tropa está doente, a nossa tropa tá carente, a nossa tropa tá abandonada, jamais poderei defender esse tipo de ação da Polícia da Bahia (…). Já não basta os policiais estarem morrendo na pandemia, estarem morrendo na mão de bandido e estarem morrendo na mão de governadores negligentes e irresponsáveis com seus policiais, e não é na última gestão, é uma década, são várias gestões, agora nós também”. E ainda repostou uma foto de admiradores com um totem seu e os dizeres “quem disse que eu não fui à Paulista?” ― a foto foi apagada e a defesa alegou liberdade de expressão.
Os juízes militares entenderam que não houve crítica especificamente a resoluções do governo, como a promotoria havia denunciado. “Não pairam dúvidas de que a conduta do réu foi extremamente perniciosa para a disciplina militar. Entretanto, não configurou crime”, escreveram.
A Ponte solicitou à PM, via Lei de Acesso à Informação, a relação de procedimentos administrativos disciplinares que tenham sido abertos em decorrência de descumprimento da diretriz, além do quantitativo de policiais que possam ter sido advertidos ou punidos, mas a Polícia Militar disse que “não tabula as causas/motivos que impulsionam a instauração de procedimentos administrativos ou processos administrativos disciplinares, sendo contabilizado apenas o total” em âmbito geral.
Tal pai, tal filho
Outro PM paulista que já usava as redes sociais com afinco e que vai se candidatar pela primeira vez a um cargo eletivo é o capitão Rafael Henrique Cano Telhada, o Telhadinha, filho do deputado estadual Coronel Telhada (PP) que é PM aposentado e ocupa cargo parlamentar desde 2012.
Com mais de 254 mil seguidores no Instagram, todo o conteúdo de Rafael Telhada faz referência à PM, indo da farda, armamento, a ocorrências. Algumas de suas postagens já foram denunciadas pela Ponte. Em fevereiro de 2020, ele comemorou o aumento de 98% dos mortos pela Rota, conforme relatório da Ouvidoria das Polícias com dados de 2019: “que venham os 200% em 2020”, escreveu. Em 2019, comemorou uma ocorrência que acabou com a morte de um homem. A Ouvidoria, na ocasião, também apontou falhas e excessos na ação. Apesar disso, Telhadinha também parece nutrir certo apreço à Ponte, uma vez que usa constantemente uma versão modificada de um retrato seu feito pela reportagem em 2019, como no caso do post acima.
A diretriz se aplica a todos os seus PMs, sejam da ativa, veteranos ou agregados, ou seja, também alcança os policiais que ocupam cargos eletivos. Quando publicada, ainda em dezembro de 2021, Coronel Telhada, assim como outros integrantes de bancadas da bala em parlamentos, se manifestaram contra a norma e mantiveram publicações.
Em um canal no YouTube, outros dois deputados federais da “bancada da bala” paulista, Coronel Tadeu e Capitão Augusto (ambos do PL e policiais militares da reserva), foram na mesma linha. Para Augusto, a norma significa um “cerceamento completo dos direitos dos policiais militares”, feita com o objetivo de impedir que os policiais usem a exposição nas redes sociais para se lançar na política. “Estão tentando corrigir os errados, mas inibindo e cerceando os que estão usando as redes corretamente”, afirmou Tadeu. Segundo ele, a nova diretriz “deixou a tropa indignada e inconformada”.
O Sou da Paz, que monitora esse fenômeno de politização nas polícias que denomina “policialismo” e defende uma “quarentena” maior e regras mais claras para policiais candidatos, argumenta que a instrumentalização do cargo traz riscos ao trabalho policial e que se trata de uma categoria de regime diferenciado. “São carreiras de Estado, carreiras públicas que representam o poder punitivo, o braço armado do Estado, que autoriza, em certas situações, a supressão de direitos individuais ou coletivos fundamentais, como o direito à liberdade, o direito à vida, com a reação policial. Isso dá uma característica diferente a esses profissionais que gera uma necessidade ainda maior para que eles sejam legalistas pelo risco que atividade deles incorre para a sociedade como um todo”, explica Felippe Angeli.
Os especialistas também questionam como vai ocorrer a fiscalização da diretriz e até que ponto ela alcança de fato os policiais eleitos. “No caso do Coronel Telhada, a diretriz se aplica porque ele é um oficial da reserva, mas a gestão da PM é do Poder Executivo e ele trabalha no Poder Legislativo, então estamos com uma situação de conflito que não sei como estão resolvendo”, aponta o coronel José Vicente. “A PM teria que representar ao presidente do legislativo estadual, o presidente da Assembleia, à Comissão de Ética, de que não está tendo o procedimento adequado, correto, mas a gente sabe que isso não dá em nada. Fica uma situação insolúvel. O próprio Capitão Augusto participou de sessões na Câmara dos Deputados fardado, nem pode usar farda pelas normas da PM”.
“A função policial militar é um bem público que de certa forma a pessoa está se apropriando para fins individuais”, pontua Angeli. “Ainda que esse bem público, que é a patente dele, também seja individual, é um tema complexo que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deveria enfrentar porque há outros bens públicos sendo usados: é o uso da viatura, é o uso da arma da corporação, uniforme, para um fim individual e eleitoral. É problemático”.
Além disso, Antonio Carlos, da OAB-SP, destaca que “o fator ideológico vai pesar muito na aplicação ou não da norma”, já que pesquisa divulgada no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que houve aumento da adesão ao bolsonarismo e a pautas antidemocráticas nas polícias ao analisar 651 perfis de policiais brasileiros em redes sociais e a respectiva interação com esses conteúdos. A maior parte (51%) é formado por praças, ou seja, policiais de baixa patente (soldados, cabos e sargentos). O oficialato, que é de alta patente, (capitães, majores, tenentes-coronéis, coronéis e aspirantes a oficiais) correspondem a 44%. “O conteúdo ideológico da corporação, que é conservadora, é muito forte. Quem avalia o que é violação, como foi criado para avaliar? A norma não traz clareza. E essas questões vão sempre barrar no perfil ideológico de quem faz a análise, o que eu acho um problema”, pondera.
O que diz a polícia
A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar sobre a diretriz e os questionamentos levantados, como a fiscalização e a aplicação em caso de policiais em cargos eletivos. Também encaminhamos os perfis mencionados nesta reportagem. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, respondeu parcialmente com a seguinte nota:
A Polícia Militar esclarece que todas as unidades da instituição possuem competência para orientar e fiscalizar o uso de mídias digitais e aplicativos de mensagem por policiais militares subordinados, além de agregados e veteranos. As orientações para o período eleitoral seguem o disposto na legislação pertinente. Indícios de desconformidades à Diretriz podem ser denunciados junto ao batalhão responsável pelo policial e à Corregedoria da PM, para devida apuração.