Por Mariana Muniz (acesse a matéria original publicado pelo jornal O Globo)
Quase 270 mil novas armas foram parar nas mãos de brasileiros desde então
Quase 270 mil novas armas foram parar nas mãos de brasileiros desde o dia 17 de setembro do ano passado, data em que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques interrompeu o julgamento de ações que questionavam decretos do presidente Jair Bolsonaro que facilitam acesso a armamentos no país. São, em média, 30 mil novas peças compradas por civis ao mês nesse período, de acordo com o levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz, com base em dados fornecidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Indicado à Corte por Bolsonaro, Nunes Marques é tido como o magistrado mais afinado com o Palácio do Planalto. Desde que chegou ao STF, em novembro de 2020, têm sido frequentes pedidos de vista e de destaques apresentados por ele em ações de interesse do governo
Nunes Marques paralisou os processos sobre flexibilização de acesso a armas quando três dos seus dez colegas de plenário já haviam votado para suspender trechos dos decretos presidenciais — Rosa Weber, Edson Fachin e Alexandre de Moraes em alguns, e Fachin, Moares e Luís Roberto Barroso em outros. Desde que era deputado, o atual titular do Planalto tem a política armamentista como uma de suas principais bandeiras eleitorais.
Parte das medidas contidas nesse pacote editado por Bolsonaro, à época da análise pelo plenário do Supremo, já havia sido suspensa por meio de decisões liminares proferidas por Rosa Weber e Edson Fachin, relatores dos casos na Corte. Há a expectativa de que a maioria dos magistrados vote para derrubar trechos da legislação armamentista. Mas, sem a conclusão do julgamento, as medidas seguem valendo.
O julgamento interrompido por Nunes Marques reúne todas os processos protocolados por diversos partidos políticos que contestavam a constitucionalidade de regulamentos editados pelo presidente desde 2019. Nem todos os decretos versam sobre exclusivamente à compra de novos armamentos.
À margem do Congresso
Ao GLOBO, o gabinete de Nunes Marques afirmou que o objetivo da descontinuidade da votação de determinados temas não é o de paralisar ou prejudicar a discussão, e sim de aprofundar a análise dos temas com o debate claro e transparente sobre questões que considera relevantes.
Entre os pontos questionados no STF, porém, estão o que extinguiu a necessidade de o cidadão interessado em comprar uma arma justificar à Polícia Federal as razões para adquiri-la. Um outro ampliou em quatro vezes a potência de armas que são consideradas de uso permitido no Brasil, liberando acesso de civis a artefatos que eram exclusivos da polícia, como peças de calibres 9mm, .40 e .45. Também é alvo de contestação a autorização para que atiradores esportivos (CACs) tenham até 60 armas, sendo 30 de calibre restrito, incluindo fuzis, e a autorização para que CACs adquiram até 5 mil munições por arma a cada ano.
As ações também pedem a revogação de portarias de marcação e rastreabilidade de armas, munições e explosivos pelo Exército e a ampliação do prazo para reapresentação dos atestados exigidos na renovação do registro de arma, de 5 para 10 anos (atestado de antecedentes criminais, atestado psicológico, e atestado técnico de capacidade de manuseio de arma). O Instituto Sou da Paz considera preocupante que Bolsonaro legisle por decreto em temas sensíveis como esse, situação que só poderia ser alterada com decisões do Supremo. Diferentemente de projetos de lei e propostas de emendas à Constituição, decretos presidenciais passam a vigorar assim que são publicados e não passam pelo escrutínio do Congresso Nacional.
— Além de impactar na segurança pública, há o risco real de que o STF esteja deixando armar a população com base em medidas adotadas unilateralmente pelo governo, sem a participação do Legislativo — avalia Felippe Angeli, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz.
Os presidentes do STF nos últimos 20 anos
Outros casos
Dos 12 processos, oito são relatados por Rosa Weber e quatro por Fachin. Em seus votos, os dois avaliaram que os decretos em questão aumentam o risco de violência. Também entenderam que tais medidas foram além do que prevê o Estatuto de Desarmamento. Decretos podem apenas regulamentar uma lei em vigor, mas não ir em sentido contrário ao que ela estabelece. Os decretos de armas não são os únicos temas de interesse do governo impactados por intervenções de Nunes Marques. Em maio, ele suspendeu o julgamento de um recurso apresentado pela defesa do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos. O pedido de vista ocorreu depois que cinco ministros já haviam votado pela manutenção da prisão preventiva do apoiador de Bolsonaro, foragido nos Estados Unidos.
Em fevereiro, o magistrado paralisou o julgamento da ação que poderia tornar réu o ex-deputado Roberto Jefferson pelos delitos de homofobia, calúnia e incitação ao crime. Na ocasião, a maioria dos ministros havia votado contra o petebista. A análise do caso só será retomada hoje, quatro meses depois.
Expediente legal
Em novembro, o próprio presidente da República admitiu que Nunes Marques tem pedido vista em processos que envolvem causas conservadoras para evitar derrotas.
— Quando se fala em pautas conservadoras, ele já pediu vista de muita coisa que tem que a ver com conservadorismo. Porque, se ele apenas votasse contra, ia perder por 8 a 3, ou 10 a 1. A gente não quer perder por 8 a 3 ou 10 a 1. A gente quer ganhar o jogo ou empatar. Ele está empatando esse jogo — disse Bolsonaro na ocasião.
As suspensões de julgamentos são medidas previstas no Regimento Interno do Supremo e conferem aos ministros a possibilidade ou de ter mais tempo para apreciar a matéria, no caso da vista, ou de levar a discussão para um debate mais aprofundado, como é o caso dos destaques.
— Embora regimental, o pedido de vista não pode se tornar algo a se “perder de vista”, para usar uma expressão comum. Em um caso como esse, de um tema tão sensível, é mais do que compreensível que o ministro queira analisar com mais profundidade a questão. Mas a duração dessa reflexão deve ser razoável — avalia a advogada constitucionalista Marluce Silveira.
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